Jornalista Andrade Junior

domingo, 31 de março de 2013

Sobre dores e alegrias

Sobre dores e alegrias - IVES GANDRA MARTINS FILHO

CORREIO BRAZILIENSE -
Num domingo de Páscoa, passado o sofrimento da Paixão de Cristo, recordado nas cerimônias da semana santa, o contraste entre a dor do início e a alegria do final é matéria de reflexão, pois o alternar de dias "fas" e "nefas", alguns de angústia profunda e outros de euforia contagiante, parece ser característico da condição humana. O romance de G. K.Chesterton (1874-1936) O homem que foi quinta-feira, de 1908, pode servir de fio condutor para essa reflexão, na linha do estudo feito sobre a obra por Ian Boyd (Revista Communio, junho 2009).

Gabriel Syme, o personagem central, alista-se no serviço secreto de combate ao anarquismo, infiltrando-se na principal organização anarquista mundial, comandada por conselho também secreto, formado por pessoas que levam o nome dos 7 dias da semana, cabendo-lhe a quinta-feira.

Ao passar pelas aventuras mais inverossímeis, as perseguições mais
estressantes e sofrimentos atrozes, revolta-se contra quem comanda as duas organizações. Após um dos membros do conselho perguntar ao misterioso Domingo, com a simplicidade de um menino, "por que fui tão maltratado", Syme também questiona o chefe: "E o senhor? Já sofreu alguma vez?"

Em todo o livro, a única citação bíblica é dada nesse momento pelo Domingo: "Ouviu-se uma voz distante recitar um lugar-comum ouvido antes nalguma parte: Podes beber na mesma taça em que eu bebo?"

Syme acaba por intuir a explicação de todos esses sofrimentos e angústias, de todas as suas aventuras, ao fim das quais não sabia de que lado realmente estava. E brada no conselho dos dias: "Mas escutem! Vou lhes dizer qual é o segredo do mundo. É que, do mundo, só conhecemos as costas. Tudo é visto por trás, e isso é brutal... Não veem que tudo está voltado de costas e esconde o rosto? Se pudéssemos dar a volta e ficar de frente..."

Chesterton nos quer dizer, não só nesse romance metafórico, mas em toda a extensa obra da qual Ortodoxia, publicado no mesmo ano de 1908, é a joia suprema, que a vida só se compreende numa perspectiva criacionista, de um Deus que fez tudo benfeito, mas deu liberdade às criaturas racionais como única forma de saber se O amavam. E o mau uso da liberdade levou à desordem universal, de cujos efeitos todos nós padecemos.

No capítulo "A moral do país das fadas", de Ortodoxia, Chesterton enuncia seu "princípio da felicidade condicional": tudo nos é permitido, desde que aceitemos a única coisa que nos é vedada. O mistério das limitações morais não é maior do que o mistério da própria Criação, fantástica e estonteante em suas maravilhas. Nesse sentido, imagina um diálogo surrealista entre Cinderela e a fada madrinha:

Por que tenho que voltar à meia-noite?, questiona-se Cinderela, como petulante adolescente.

Então me responda primeiro porque podes ficar lá até a meia-noite?

 Se a dádiva da carruagem, vestidos, cavalos e cocheiros é fantástica e não questionada, a condição para recebê-los não será menos incompreensível. Mas existe. E, se a condição é quebrada, o mundo vira de pernas para o ar...

Só um Deus para consertar tudo isso, vindo participar das vicissitudes humanas, sofrendo mais do que todos e resgatando o que havia se perdido. É o Domingo, Senhor que promove o bem e permite o mal para dele tirar um bem maior. Em geral, os romances e novelas mais cativantes são os mais dramáticos.

Chesterton dirá que, se a vida é um pesadelo (A nigthmare é o subtítulo do The man who was Thursday), é um pesadelo agradável. Quaisquer que sejam os sofrimentos, eles são incidentais. É o otimismo visceral de quem vê o mundo em perspectiva cristã, no qual se abraça a cruz de cada dia com bom humor à prova de bomba.

Assim, se do mundo só conhecemos as costas, pois a face de Deus nos está oculta, podemos clamar: "Senhor, quero ver o teu rosto", mas não sem antes responder que "podemos" e queremos acompanhá-lo ao beber o cálice da dor. Voltamos, desse modo, à paradoxal alegria chestertoniana, que nos faz recuperar, purificadas, todas as coisas, tendo começado por correicionar a nós mesmos.

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