Jornalista Andrade Junior

terça-feira, 26 de março de 2013

O que falta ao nosso tempo

Escrito por Rodrigo Gurgel

 Prefácio para o livro O que há de errado com o mundo, de G. K. Chesterton (Editora Ecclesiae).

Quando Gilbert Keith Chesterton publicou, em 1910, O que há de errado com o mundo, talvez não imaginasse que demoraria mais de uma década para se converter à Igreja Católica Apostólica Romana. Há incrível distância, portanto, entre suas ideias – ele publicara Hereges em 1905 e Ortodoxia em 1908 – e a decisão que o transformou num dos mais respeitáveis convertidos do século XX. Mas distância, neste caso, não significa incoerência. Ao contrário, a vida de Chesterton foi – até seu batizado, a 30 de julho de 1922, no simples salão de baile do Railway Hotel, em Beaconsfield, transformado provisoriamente numa capela, pois a cidade não dispunha de templo católico – um exemplo, segundo Joseph Pearce,[i] de “catolicismo latente”.

Assim, se voltarmos às circunstâncias pessoais em que surge O que há de errado com o mundo, não causa surpresa o bem-humorado epitáfio composto pelo escritor Edward Verrall Lucas em 1910, de maneira a sintetizar a personalidade famosa por seu “dogmatismo”:
O pobre Chesterton morreu;
Deus, por fim, a verdade conheceu.

Nosso escritor, entretanto, estava distante de ser um crédulo exagerado ou o cego defensor de uma doutrina religiosa. Ao contrário, o que acalentava no coração era demonstrado na singeleza dos desenhos oferecidos centenas de vezes a crianças, nos quais retratava seus respectivos santos patronos; ou na transcendência de influenciar amigos e conhecidos – como fez em relação ao poeta, historiador e crítico literário Theodore Maynard, cuja conversão ocorreu logo depois de ler Ortodoxia; ou, ainda, numa desconfortável dose de angústia, fartamente demonstrada por seus biógrafos.
Um exemplo revelador da fé de Chesterton dá-se em janeiro de 1909, quando, depois de aceitar o convite da modernista e marxista Church Socialist Quarterly, publica nesse periódico o artigo “O sentimentalismo, a cabeça e o coração”, no qual contrapõe sua visão tradicionalista às ideias que já haviam sido condenadas por Pio X, em 1907, na famosa encíclica Pascendi Dominici Grecis. Usando de sua excepcional qualidade para trabalhar com metáforas, Chesterton cria a famosa filosofia da árvore e da nuvem:
[...] A árvore vai crescendo e, dessa forma, mudando, mas o que se modifica é apenas o cerco que rodeia uma parte imutável. Os anéis situados no centro continuam sendo os mesmos de quando era um broto. Deixaram de ser vistos, mas não deixaram de ser centrais. Quando nasce um ramo na parte superior de uma árvore, ele não se desprende de suas raízes, antes, ao contrário, quanto mais alto se elevam os ramos, com mais força a árvore terá de se prender às suas raízes. Este é o verdadeiro conceito do que deve ser o progresso sadio e vigoroso do homem, das cidades, ou de toda uma espécie. Mas quando os progressistas a que estou aludindo falam de evolução, não se referem a isto. Eles não desejam que mude a parte externa de um centro orgânico e permanente, como numa árvore; objetivam a modificação total e absoluta de cada parte a cada minuto, como a transformação que sofrem as nuvens.
Mas se adotarmos como filosofia uma evolução similar à das nuvens, ou seja, uma evolução de algo que não tem esqueleto, não haveria lugar, então, para o passado e a civilização estaria incompleta; o que hoje existe pode desaparecer amanhã, inclusive amanhã mesmo. Pois bem, eu não creio nesse progresso perpétuo que acarreta apenas um caos perpétuo; creio na evolução orgânica, ordenada e de acordo com o projeto e a natureza de cada coisa. Penso, por conseguinte, que não pode evoluir a civilização que não esteja razoavelmente completa, e a nossa, tão científica, avançada e progressista, está irracionalmente incompleta.
Para termos uma ideia da repercussão desse artigo, seria o mesmo que, mutatis mutandis, certo autor publicasse texto semelhante numa revista dirigida, atualmente, pela Teologia da Libertação. O que só poderia acontecer, convenhamos, graças a um tremendo descuido do editor...
O artigo de Chesterton recebeu virulenta resposta do esquerdista Robert Dell, um tipo especial de católico, muito comum nos dias de hoje, cujo esforço foi o de provar que “o despertar da consciência social e a difusão do sentimento de compaixão não eram conquistas da Igreja, mas, sim, da Revolução Francesa”, que a “Igreja Católica era a principal força reacionária em todos os países da Europa” e, finalmente, depois de atacar Pio X, que a “Igreja papista” deveria ser destruída.
Antes que Dell abandonasse o catolicismo – para transformar-se em agnóstico e revolucionário socialista –, coube ao anglicano Chesterton defender Roma. Na tréplica “A podridão do modernismo”, nosso escritor afirma, dentre outras verdades: “O dogma da Igreja limita o pensamento da mesma maneira que o axioma de Euclides sobre o sistema solar limita a ciência física: não detém o pensamento, mas lhe proporciona uma base fértil e um estímulo constante”. Resposta que o trocista Edward Verrall Lucas certamente não leu.
Chesterton mantinha, de forma repetida, essas polêmicas. No mês da resposta a Dell, pediram-lhe também a contestação, no Hibbert Journal, de um artigo assinado por certo “Mr. Roberts”. O texto negava a divindade de Jesus Cristo – e Chesterton optou por replicar com sua característica ironia, dizendo, logo no início, que o título do artigo – “Jesus ou Cristo?” – o atingia como se estivesse lendo algo semelhante a “Napoleão ou Bonaparte?”.
Chesterton aproveitaria sua experiência nesses debates para escrever A esfera e a cruz, publicado no final de 1909. Com deliciosas pinceladas de nonsense e humor, a novela apresenta dois protagonistas, um católico e um ateu. Eles passam a história tentando realizar seu duelo intelectual – a respeito das verdades do cristianismo –, sempre interrompidos pela polícia, que os considera perigosos à ordem pública. De fuga em fuga, os dois acabam por se tornar amigos num cenário semelhante ao Juízo Final. Uma história que, somada ao clássico de Cervantes, com certeza inspirou Graham Greene a escrever Monsenhor Quixote.
Incansável polígrafo, em maio de 1910 Chesterton publicaria novo artigo, no Daily News – uma aula de teologia e estilística:
Não utilizem um substantivo e depois um adjetivo que contradiga o substantivo. O adjetivo qualifica, não contradiz. Não digam “deem-me um patriotismo livre de fronteiras”, porque é como se dissessem “deem-me um pastel de carne sem carne”. Não digam “anseio por uma religião mais ampla, na qual não existam dogmas especiais”, porque seria como dizer “quero um quadrúpede maior que não tenha patas”. Quadrúpede significa algo com quatro patas e religião significa aquilo que compromete o homem com uma doutrina universal. Não deixem que o dócil substantivo seja assassinado por um adjetivo exuberante e jubiloso...
Contra o senso comum
O que há de errado com o mundo surge nesse momento da vida intelectual de Chesterton, livro mal recebido por alguns, se nos basearmos na crítica publicada pelo jornal Evening Standard: “Não temos nem a mais remota ideia do que está mal no mundo; e depois de ler o livro do Sr. Chesterton, [...] sentimos chegar à conclusão de que ele tampouco sabe”. Segundo Joseph Pearce, a recepção negativa da obra se deve, em parte, aos editores. Estes, convencidos de que um pouco de agressividade favoreceria as vendas, acrescentaram ao título original, O que há de errado, a expressão com o mundo, passando, de certa forma, a impressão de um autor arrogante, único detentor da verdade.    
No entanto, O que há de errado com o mundo realmente não foi escrito para agradar. Essa era a última preocupação de Chesterton naquela Inglaterra sacudida por dois grandes movimentos políticos. A filiação aos sindicatos crescia de forma expressiva – de 2,5 milhões de trabalhadores em 1901 para 4 milhões em 1913 – e estes, lutando por representação parlamentar, fizeram com que o Labour Party, fundado em 1900, pulasse de dois deputados, em 1901, para cinquenta em 1906. Aproveitando a onda trabalhista, que tinha apoio dos Whigs – liberais e anticatólicos –, a esquerda, com socialistas e anarquistas, ganhou força, a ponto de, em 1911, quando Jorge V assume o trono, a Câmara dos Lordes ser praticamente forçada – sob a pressão do primeiro-ministro liberal, Herbert Henry Asquith – a votar a limitação dos seus próprios poderes. Pari passu, o movimento sufragista – fundador do feminismo contemporâneo –, que vinha crescendo lentamente desde a década de 1830, ganha força, em 1903, com a fundação do Women’s Social and Political Union (WSPU), facção violenta da National Union of Women’s Suffrage Societies (NUWSS). Nos anos seguintes, o WSPU tornou-se um aglomerado de agitadoras profissionais, responsável por depredações, tumultos e outras formas de violência, mas soube capitalizar a opinião pública utilizando-se do recurso da greve de fome, dentro ou fora das prisões.
Diante de tal conjuntura, a visão desapaixonada, lúcida e profundamente católica de Chesterton só poderia agradar a pequena parcela de leitores. Em meio à balbúrdia, ao populismo e à agitação social artificiosa, a sensatez chestertoniana transpirava verdades incômodas que ninguém queria ouvir. Nosso escritor tinha plena consciência disso, inclusive do papel camaleônico e dissimulado dos jornais, exatamente como os diferentes setores da mídia agem na atualidade:
Se você empreender hoje uma discussão com um jornal moderno cuja posição política é oposta à sua, descobrirá que não se admite meio-termo entre a violência e a fuga; você não receberá senão jargões ou silêncio. Um editor moderno não deve ter o ouvido atento que acompanha a língua honesta. Pode ser surdo-mudo – a isso chamam “dignidade”. Ou pode ser surdo-barulhento – a isso chamam “jornalismo mordaz”.
Numa sociedade em visível processo de desagregação, Chesterton se propõe a compor um diagnóstico que em nada agradará ao doente completamente cego para seus próprios problemas:
[...] Concordamos que a Inglaterra está insalubre, mas metade de nós seria incapaz de ver saúde naquilo que a outra metade chama de “saúde florescente”. Os abusos públicos são tão patentes e pestilentos que arrastam todas as pessoas generosas para uma espécie de unanimidade fictícia.
Semelhante ao Brasil de hoje, na Inglaterra do início do século XX a “política são ovos podres” e “no embrião de tudo penetra o veneno”. Desvinculado de sua verdadeira vocação, que é divina, o homem preso aos limites humanos, vendo apenas o horizonte estreito da vida material, perde também o sentido da ética. Chesterton alertava:
A única forma de falar do mal social é ir direto ao ideal social. Todos temos consciência da loucura nacional, mas o que é a sanidade nacional? Chamei este livro de “O que há de errado com o mundo”, mas esse título algo indômito conduz a um só lugar: errado é não solicitarmos o que é certo.
No centro do que Modris Eksteins chamou de “sentimento eduardiano da crise, estimulado pela atividade das sufragistas, pela inquietação trabalhista, pela oposição ao papel da aristocracia no processo legislativo”, Chesterton representava a Grã-Bretanha, “principal potência conservadora do fin-de-siècle. Primeira nação industrial, agente da Pax Britannica, símbolo de uma ética da iniciativa e do progresso baseada no parlamento e na lei”[ii] – e que, poucos anos depois de O que há de errado com o mundo ser publicado, levantou-se contra a arrogância das Potências Centrais, na Primeira Guerra Mundial.
Recusando o “oportunismo atordoado e desajeitado que se põe no caminho de tudo”, típico da classe política, Chesterton introduz seus pensamentos na contramão do senso comum:  
Em nossa época, despontou uma fantasia singularíssima: a de que, quando as coisas vão muito mal, precisamos de um homem prático. Seria bastante mais verdadeiro dizer que, quando as coisas vão muito mal, precisamos de um teórico. Um homem prático é alguém acostumado à mera prática cotidiana, à maneira como as coisas funcionam normalmente. Quando as coisas não estão funcionando, é preciso do pensador, do homem com uma doutrina que explica por que elas não estão funcionando. Enquanto Roma arde em chamas, é errado tocar violino; mas é correto estudar teoria hidráulica.
Nosso escritor era esse teórico, alguém disposto a buscar a origem dos problemas, o “velho e distraído professor de cabeleira desgrenhada e branca”, figura de um dos seus imaginativos exemplos, intelectual colocado muito acima da “eficiência” – pois esta “só se ocupa das ações depois de concluídas” –, pensador que “tem a cura antes da doença”.
Chesterton refutava o conjunto de opiniões que pretendia se impor como natural ou necessário. Um de seus primeiros cuidados em O que há de errado com o mundo é denunciar o poder do “grande preconceito impessoal” do mundo moderno, contrapondo-lhe “uma sanidade mental de aço e uma firme resolução de não dar ouvidos aos modismos”. Contra o caráter efêmero das ideias que via espocar em cada esquina, Chesterton retorquia com uma proposta até hoje ousada, a de buscar a dignidade escondida no passado:
A mente moderna vê-se forçada na direção do futuro pela sensação de fadiga – não isenta de terror – com que contempla o passado. Ela é propelida para o futuro. Para usar uma expressão popular, é arremessada para meados da semana que vem. E a espora que a impulsiona avidamente não é uma afeição genuína pela futuridade, pois a futuridade não existe, pois que ainda é futura. É antes um medo do passado: um medo não só do mal que há no passado, senão também do bem que há nele. O cérebro entra em colapso ante a insuportável virtude da humanidade. Houve tantas fés flamejantes que não podemos suportar; houve heroísmos tão severos que não somos capazes de imitar; empregaram-se esforços tão grandes na construção de edifícios monumentais ou na busca da glória militar que nos parecem a um tempo sublimes e patéticos. O futuro é um refúgio onde nos escondemos da competição feroz de nossos antepassados. São as gerações passadas, não as futuras, que vêm bater à nossa porta.
O texto chestertoniano está repleto de trechos assim, nos quais a verdade é anunciada com eloquência comovedora. Ele nos arrebata porque, no fundo de nossas mentes corrompidas pelas ideologias, sabemos o quanto seu pensamento está certo: “Os homens inventaram novos ideais porque não se atrevem a buscar os antigos. Olham com entusiasmo para a frente porque têm medo de olhar para trás”. Esperanças baseadas em sofismas, as promessas dos ideólogos são balões de ar que explodem em contato com a pressão da realidade. “O futuro é uma parede branca na qual cada homem pode escrever seu próprio nome tão grande quanto queira”, diz Chesterton, mas “o passado já está abarrotado de rabiscos ilegíveis de nomes como Platão, Isaías, Shakespeare, Michelangelo, Napoleão”.
O advento do homem narcísico, o amanhecer do neopelagianismo, que pretende dispensar a graça divina e erigir o homem como dono absoluto do seu próprio destino, é a esse duplo espetáculo que Chesterton assiste, mas sem conivência. Ao contrário, denuncia a lógica visceralmente errada dos esquerdistas. Suffragettes e socialistas gritam: “Se algo foi derrotado, foi refutado”. Mas Chesterton retruca: “[...] O que se dá é sem dúvida o contrário: as causas perdidas são exatamente aquelas que poderiam ter salvado o mundo”. E completa, de maneira inquestionável, com um período cujo vigor nos contagia:
Os grandes ideais do passado fracassaram não porque tenhamos sobrevivido a eles, mas porque não foram vividos o bastante. A humanidade não transpôs a Idade Média: fugiu dela em debandada. O ideal cristão não foi julgado e considerado deficiente: foi considerado difícil e deixado injulgado.
Às propostas dos socialistas, impregnadas de estatismo e quimérica igualdade social, semelhantes às que cansamos de ouvir na última década e meia – no Brasil e em vários países da América Latina –, Chesterton contrapõe discurso incisivo. Ele denuncia o “oportunismo aterrador”, a “morbidez moderna que insiste em tratar o Estado [...] como uma espécie de recurso desesperado em tempos de pânico”. Chama-a, com zombaria, de “passatempo da classe média alta”, e mostra, por meio de uma série de vivos exemplos, como, ao pretenderem enfraquecer a vida privada, os socialistas na verdade roubam a liberdade pessoal e contribuem à destruição da família. Seguindo os passos de seu grande amigo Hilaire Belloc, cuja inspiração nascera, por sua vez, da encíclica Rerum novarum, de Leão XIII, Chesterton se opõe ao socialismo e ao capitalismo, com idêntica veemência, para defender a justiça social – e critica a concentração da propriedade, nas mãos do Estado ou de milionários. “Muito capitalismo”, ele dirá anos mais tarde, em The uses of diversity, de 1920, “não quer dizer muitos capitalistas, mas muitos poucos capitalistas”. [iii] Ou, com extremo bom humor, neste O que há de errado com o mundo: “O duque de Sutherland possuir todas as chácaras numa única propriedade rural é a negação da propriedade, assim como seria a negação do casamento se ele tivesse todas as nossas esposas em um único harém”.
No que se refere às sufragistas – embrião do movimento que, hoje, defende o aborto como “direito humano” –, Chesterton não receia ganhar a antipatia feminina:
Elas não geram revolução, o que geram é anarquia; e a diferença entre essas duas coisas não é uma questão de violência, mas de fecundidade e finalidade. A revolução, por sua natureza, gera um governo; a anarquia só gera mais anarquia.
Este é o cerne do pensamento antissufragista de Chesterton. E não há nenhum exagero em dizer que ele prevê as consequências dessa “primeira onda” do feminismo – para citar a classificação utilizada por alguns estudiosos contemporâneos –, início de um movimento maior, provocador da “segunda onda”, anti-família e anti-maternidade, cuja tarefa foi levar as primeiras reivindicações, de igualdade perante a lei, para o âmbito da vida íntima, chegando, então, à “terceira onda”, experimentada hoje, com a ideologia de gênero e a tentativa de ignorar a ordem biológica, de maneira a transformar masculinidade e feminilidade em meras construções culturais, além de promover a libertinagem e o aborto.
Para Dorothy Collins, secretária e, mais tarde, filha adotiva dos Chesterton, o escritor “sentia um respeito místico pelas mulheres”. Talvez por esse motivo afirme que “daria às mulheres não mais direitos, mas mais privilégios”. Idealista ou não, intuía o toque da graça de Deus na alma feminina, experimentou-o durante os longos anos de convivência com sua amada Frances Blogg, e pôde se antecipar a algumas das ideias que Gertrud von le Fort (em A mulher eterna) e Edith Stein (em Die Frau. Ihre Aufgabe nach Natur und GnadeA mulher. Sua tarefa segundo a natureza e a graça) desenvolveriam a partir da década de 1930:
Houve um tempo em que eu, você e todos nós estávamos muitos mais próximos de Deus; tanto que, ainda hoje, a cor de um seixo (ou de uma pintura) e o cheiro de uma flor (ou de fogos de artifício) tocam-nos o coração com uma espécie de autoridade e convicção, como se fossem fragmentos de uma mensagem confusa ou traços de um rosto esquecido. Incorporar essa ardente simplicidade à totalidade da vida é o único objetivo real da educação. E quem está mais perto da criança é a mulher – ela compreende. Dizer exatamente o que ela compreende está fora do meu alcance. Só posso garantir que não é uma solenidade. É antes uma leveza altaneira, um amadorismo ruidoso do universo, assim como o que sentíamos quando éramos pequenos, o que nos fazia cantar, cuidar do jardim, pintar e correr. Arranhar as línguas dos homens e dos anjos, meter o nariz nas terríveis ciências, fazer malabarismos com colunas e pirâmides, jogar bola com os planetas, eis a audácia interior e a indiferença que a alma humana, como o ilusionista a jogar suas laranjas, deve conservar para sempre. Eis aquela coisa insanamente frívola a que chamamos sanidade mental. E a mulher elegante, deixando cair os anéis dos cabelos por sobre suas aquarelas, sabia disso e agia levando-o em conta. Ela fazia malabarismos com sóis frenéticos e flamejantes. Mantinha o arrojado equilíbrio das inferioridades que é a mais misteriosa – e talvez a mais inacessível – das superioridades. Ela mantinha a verdade primordial da mulher, da mãe universal: se uma coisa é digna de ser feita, é digna de ser mal feita.
Chesterton sabia perfeitamente que “se as mulheres chegassem a ser ‘iguais’ aos homens, se envileceriam”, diz Joseph Pearce. É nossa realidade hoje. Como afirma Francisco José Contreras, “o tipo de sexualidade (banalizada, de consumo rápido, desvinculada do amor, do compromisso e da reprodução) [...] parece desenhada à medida das necessidades e caprichos masculinos. As mulheres são as grandes vítimas da revolução sexual [...]. Na sociedade hipersexualizada, a mulher se converte com frequência em objeto de usar e jogar fora. As feministas conseguiram impor à mulher o modelo sexual masculino”. E em outro trecho, citando a jornalista e ensaísta Eugenia Rocella: “O neofeminismo converte as mulheres em ‘machos falidos’”.[iv]
Não é preciso muito esforço para perceber que o mundo contemporâneo se incumbe, dia após dia, de comprovar a dramática atualidade das profecias de Chesterton, aqui ainda referindo-se ao movimento sufragista:  
A destruição é finita ao passo que a obstrução é infinita. Enquanto a rebelião assume a forma de mera desordem (em vez de a de uma tentativa de impor uma nova ordem), não há um final lógico para ela; ela pode alimentar-se e renovar-se eternamente.
O intelectual inspirado pela compreensão cristã do mundo sabe que os ideólogos pretendem substituir o matrimônio pelo hedonismo absoluto. Exatamente por essa razão, Chesterton faz sábia e vigorosa defesa, como raras vezes encontramos atualmente, da família, esse núcleo de segurança, amor, dedicação e estabilidade:
O princípio é este: em tudo que é digno de ter – mesmo nos prazeres todos – há uma porção de dor ou tédio que deve ser preservada a fim de que o prazer possa renascer e perdurar. A alegria da batalha vem depois do primeiro medo da morte; a alegria de ler Virgílio vem depois do enfado de tê-lo estudado; o entusiasmo do banhista vem depois do choque inicial em face da gelada água do mar; e o sucesso do matrimônio vem depois do fracasso da lua de mel. Todos os votos, leis e contratos humanos são maneiras de sobreviver com sucesso a esse ponto de ruptura, a esse instante de rendição potencial.
Em tudo que vale a pena fazer há um estágio em que ninguém o faria, exceto por necessidade ou por honra. É então que a Instituição sustém o homem e o ajuda a prosseguir sobre um terreno mais firme. Se este sólido fato da natureza humana é suficiente para justificar a dedicação sublime do matrimônio cristão, isso já é outra questão; importa saber que ele é plenamente suficiente para justificar a corrente impressão dos homens de que o matrimônio é algo fixo e sua dissolução é uma falha ou, no mínimo, uma ignomínia.
Selecionar e rejeitar
Há muito mais em O que há de errado com o mundo. E não direi que o livro permanece atual pelo fato de o mundo seguir errado, pois seria cometer não apenas uma obviedade, mas, principalmente, repulsivo lugar-comum. Afirmo, porém, que Chesterton pode falar com a mesma veracidade, com o mesmo poder de sedução, sobre camaradagem e democracia, dogma e educação; rir e discordar de Bernard Shaw – sem jamais perder sua amizade – ou elogiar e fazer justiça ao, no Brasil, negligenciado Samuel Johnson; vergar-se à beleza e ao mistério da Encarnação ou enaltecer os méritos do parlamentarismo britânico, pois, na sua terra natal, “o primeiro homem que você avistar pela janela, eis o rei da Inglaterra”. Definir o que é um diálogo perfeito, denunciar os perigos do cesarismo, zombar das “imaturas e hipotéticas” filosofias modernas: Chesterton abarca tudo, pois, como afirma o ensaísta Eduardo Mallea,
a fome de relação achava-se proporcionada a seu corpo físico. Quer isso dizer que sua fome era gigantesca. Fome humana: fome de verdade; fome de verdade humana. Uma fome que não saciavam os conceitos, uma fome que não saciavam as ideias, uma fome que não saciavam as seitas, uma fome que não saciavam os axiomas, uma fome que não saciavam as estruturas mentais. Uma fome que não parava. Uma fome que ia mais além de tudo isso e que tinha a arquitetura do corpo humano: sua solidez, sua força, suas necessidades, sua mobilidade. Uma fome que era um estado de plenitude solicitada, contada, ou seja, um estado de poesia.[v]
Nos dias que correm, quando o relativismo empreende luta aberta para asfixiar a verdade, é de certa forma animador descobrir a velhice dessa guerra, e a presença de soldados valorosos ao nosso lado, pois Chesterton, há um século, demonstrava plena consciência da “tarefa da cultura”, não “uma tarefa de expansão, mas muito decididamente de seleção – e rejeição”. Certeza que devemos nos sentir moralmente obrigados a colocar em prática.
Com seu raciocínio envolvente, construído por meio de analogias e paradoxos inesperados, Chesterton dilui a camada de banalidade que recobre as coisas comuns. Sua retórica ensolarada pisoteia, com a alegria de um menino, grande parte do ensaísmo contemporâneo, principalmente no Brasil, onde a arrogância epistêmica se espalha, renovando-se, a cada dia, por meio da sintaxe confusa e do jargão intraduzível. Há algo de agradavelmente hipnótico na sua escrita, correndo solta, desimpedida, livre de exercícios tautológicos, um dos cacoetes herdados da semiologia de inspiração barthesiana. Chesterton não se refugia no vocabulário afetado ou hermético porque não dissimula, não é um enfadonho esnobe, possui convicções e dá à linguagem o tratamento merecido: o de honrosa ferramenta – e não o de uma divindade. Movido por profundo respeito pelo leitor, seus textos nascem da consciência de que, “para um católico, qualquer ato cotidiano é uma dramática dedicação ao serviço do bem ou do mal”. Alto, obeso, de riso tonitruante, seu volumoso corpo só foi superado pela multifacetada abrangência de suas ideias. Era o que mais falta ao nosso tempo: um sábio.

Notas:
[i] A maioria das informações da primeira parte deste Prefácio foi retirada de G. K. Chesterton – sabiduría e inocencia (Ediciones Encuentro, Madrid, 2009).
[ii] Eksteins, Modris. A Sagração da Primavera – a Grande Guerra e o nascimento da Era Moderna, Editora Rocco, RJ, 1992.
[iii] Interessante contextualização das ideias econômicas de Belloc e Chesterton – o distributismo – pode ser encontrada no Capítulo 1 de Ser consumidos – economía y deseo en clave cristiana, do teólogo William T. Cavanaugh (Editorial Nuevo Inicio, Granada, 2011), que cita o exemplo da Empresa Cooperativa Mondragón, fundada, na Espanha, em 1956, pelo sacerdote vasco José María Arizmendiarrieta. A necessária ponderação é feita na nota de rodapé nº 50, dos tradutores, de leitura indispensável, pois dá novas informações, decepcionantes, sobre a Mondragón e salienta que nenhuma experiência econômica de inspiração católica está livre de um processo de secularização, “um fenômeno inevitável se não se parte de uma crítica teológica às categorias básicas, à antropologia e à ontologia subjacentes às práticas econômicas da modernidade”.
[iv] Para um aprofundamento destas questões recomendo a leitura dos livros de Francisco José Contreras (Nueva izquierda y cristianismo, Ediciones Encuentro, Madrid, 2011, coautoria de Diego Poole) e Eugenia Rocella (Contra el cristianismo – la ONU y la Unión Europea como nueva ideología, Ediciones Cristandad, Madrid, 2008, coautoria de Lucetta Scarafia), dos quais foram retiradas as citações.
[v] Apud Mendes, Oscar. “Gilbert Keith Chesterton”, in Estética literária inglesa, Editora Itatiaia-INL, Belo Horizonte, 1983.

0 comments:

Postar um comentário

Twitter Delicious Facebook Digg Stumbleupon Favorites More