Durante anos o relativismo serviu de navio quebra-gelo para demolir as
resistências a propostas que, por sua vez, nada tinham de relativistas,
que eram, ao contrário, as mais absolutistas e intransigentes que se
pode imaginar.
Um dos vícios mentais mais deploráveis, e mais comuns entre conservadores e liberais, é o de reduzir os debates públicos a discussões puramente acadêmicas, em que as “idéias” são enfocadas pelo seu conteúdo teórico tão-somente, fora dos esquemas políticos que as geraram. Assim, por exemplo, homens fiéis a valores e princípios tradicionais – filosóficos ou religiosos – já produziram milhares de refutações cabais do “relativismo”, mas nem por isso lograram deter o avanço das propostas político-sociais que vêm protegidas sob salvaguardas relativistas. Quanto mais vitoriosos no campo acadêmico, mais perdedores se tornam na luta política.
É
que acadêmicos e ativistas não falam a mesma linguagem. Os primeiros
não compreendem a linguagem dos segundos, mas estes compreendem a
daqueles perfeitamente bem e a usam como uma camisa-de-força para
aprisioná-los no campo das idéias puras, para que não percebam que, no
quadro de uma estratégia política, uma idéia qualquer pode ter um
significado prático inverso ao do seu conteúdo teórico. Este serve
apenas como o pano vermelho com que o toureiro desvia a investida do
touro.
As
idéias dos ativistas quase nunca significam o que dizem. Por baixo do
seu conteúdo ostensivo escondem um objetivo estratégico que, no plano
histórico, virá a constituir o seu único conteúdo efetivo quando o jogo
dialético das idéias e das ações tiver atingido seu resultado.
Assim,
por exemplo, durante anos o relativismo serviu de navio quebra-gelo
para demolir as resistências a propostas que, por sua vez, nada tinham
de relativistas, que eram, ao contrário, as mais absolutistas e
intransigentes que se pode imaginar.
Note-se
que é impossível discutir o relativismo em teoria sem subscrevê-lo ao
menos em parte e implicitamente: toda idéia que é aceita como objeto de
refutação lógica adquire, ipso facto, o estatuto de doutrina
intelectualmente respeitável, digna de atenção acadêmica. Bombardear o
mundo acadêmico com um constante assalto relativista aos princípios e
valores pode não persuadir ninguém a endossar o relativismo doutrinal,
mas habitua todo mundo a praticar, com relação a ele, aquela quota de
relativismo imprescindível a qualquer discussão. Com alguns anos desse
tratamento, o mais dogmático dos tradicionalistas está amestrado para
entrar no debate com menos disposição de vencê-lo que de provar que é
“tolerante” e “aberto” – um compromisso do qual seu oponente está
automaticamente dispensado.
Em
vez de discutir o relativismo, é preciso exigir do relativista as
provas de que adere a essa doutrina com sinceridade, de que concede aos
dois lados o atenuante relativista em vez de usá-lo somente como arma
provisória para diluir as resistências do adversário e em seguida impor a
ele alguma exigência absolutista e intolerante, imunizada a priori contra qualquer cobrança relativista.
Qualquer um pode perceber que gayzistas, feministas, abortistas e tutti quanti
nunca teriam espaço na sociedade se este não tivesse sido aberto
antecipadamente pela invasão relativista, mas que, na mesma medida,
entram em campo livres de qualquer obrigação relativista e armados do
mais rígido absolutismo. Você conhece algum gayzista, feminista ou
abortista disposto a concordar que as exigências do seu grupo têm um
valor apenas relativo, que as crenças de seus adversários têm uma
parcela de razão e devem ser tão respeitadas quanto as dele? Já viu
algum deles reconhecer ao menos em tese o direito de combater suas
propostas sem medo de represálias? No entanto, nenhum deles teria tido
sequer a chance de ser ouvido com atenção e respeito se a vanguarda
relativista não tivesse antes minado a intransigência dos seus
adversários. Servem-se do relativismo como de uma gazua: quando a porta
está arrombada, mudam instantaneamente de conversa e tratam de condenar
como crime qualquer tentativa de relativizar a autoridade das suas
exigências.
Para
dizer a verdade, raramente ou nunca se vê um relativista genuíno,
sincero, que continue relativista quando isto já não convém à sua
política, ou que conceda ao adversário as mesmas salvaguardas
relativistas sob as quais se abriga. Praticamente todo relativismo em
circulação hoje em dia é falso, é pura armadilha.
É
estúpido perder tempo discutindo o conteúdo abstrato de uma teoria na
qual seu porta-voz mesmo não acredita, de uma teoria que ele
simplesmente emprega como ferramenta provisória para abrir caminho para
um projeto político inteiramente diverso e até oposto. Se uma teoria é
apenas camuflagem, é óbvio que ela não tem nenhum conteúdo em si mesma,
que seu único sentido real é a proposta na qual pretende desembocar tão
logo o adversário abra a guarda.
Nesses
casos, a coisa inteligente a fazer é recusar peremptoriamente o debate
nos termos em que o espertalhão o coloca e, em vez disso, desmascarar
logo a proposta política subjacente, junto com o ardil que a prepara e
camufla.
É
claro que a passagem do rodeio relativista à exigência totalitária não é
repentina, mas sempre gradual e, idealmente, insensível. Mas, quando o
processo se completa, é tarde para denunciar retroativamente a
desconversa relativista que o preparou.Publicado no Diário do Comércio.
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