A mente revolucionária é um fenômeno histórico perfeitamente identificável e contínuo, cujos desenvolvimentos ao longo de cinco séculos podem ser rastreados numa infinidade de documentos. Não é um fenômeno essencialmente político, mas espiritual e psicológico, se bem que seu campo de expressão mais visível e seu instrumento fundamental seja a ação política.
Para facilitar as coisas, uso as expressões
“mente revolucionária” e “mentalidade revolucionária” para distinguir
entre o fenômeno histórico concreto, com toda a variedade das suas
manifestações, e a característica essencial e permanente que permite
apreender a sua unidade ao longo do tempo.
“Mentalidade revolucionária” é o estado de
espírito, permanente ou transitório, no qual um indivíduo ou grupo se
crê habilitado a remoldar o conjunto da sociedade – senão a natureza
humana em geral – por meio da ação política; e acredita que, como agente
ou portador de um futuro melhor, está acima de todo julgamento pela
humanidade presente ou passada, só tendo satisfações a prestar ao
“tribunal da História”. Mas o tribunal da História é, por definição, a
própria sociedade futura que esse indivíduo ou grupo diz representar no
presente; e, como essa sociedade não pode testemunhar ou julgar senão
através desse seu mesmo representante, é claro que este se torna assim
não apenas o único juiz soberano de seus próprios atos, mas o juiz de
toda a humanidade, passada, presente ou futura. Habilitado a acusar e
condenar todas as leis, instituições, crenças, valores, costumes, ações e
obras de todas as épocas sem poder ser por sua vez julgado por nenhuma
delas, ele está tão acima da humanidade histórica que não é inexato
chamá-lo de Super-Homem.
Autoglorificação do Super-Homem, a
mentalidade revolucionária é totalitária e genocida em si,
independentemente dos conteúdos ideológicos de que se preencha em
diferentes circunstâncias e ocasiões.
Recusando-se a prestar satisfações senão a
um futuro hipotético de sua própria invenção e firmemente disposto a
destruir pela astúcia ou pela força todo obstáculo que se oponha à
remoldagem do mundo à sua própria imagem e semelhança, o revolucionário é
o inimigo máximo da espécie humana, perto do qual os tiranos e
conquistadores da antigüidade impressionam pela modéstia das suas
pretensões e por uma notável parcimônia no emprego dos meios.
O advento do revolucionário ao primeiro
plano do cenário histórico – fenômeno que começa a perfilar-se por volta
do século XV e se manifesta com toda a clareza no fim do século XVIII –
inaugura a era do totalitarismo, das guerras mundiais e do genocídio
permanente. Ao longo de dois séculos, os movimentos revolucionários, as
guerras empreendidas por eles e o morticínio de populações civis
necessário à consolidação do seu poder mataram muito mais gente do que a
totalidade dos conflitos bélicos, epidemias, terremotos e catástrofes
naturais de qualquer espécie desde o início da história do mundo.
O movimento revolucionário é o flagelo maior que já se abateu sobre a espécie humana desde o início dos tempos históricos.
A expansão da violência genocida e a imposição de restrições cada vez mais sufocantes à liberdade humana acompanham pari passu a
disseminação da mentalidade revolucionária entre faixas cada vez mais
amplas da população, pela qual massas inteiras se imbuem do papel de
juízes vingadores nomeados pelo tribunal do futuro e concedem a si
próprias o direito à prática de crimes imensuravelmente maiores do que
todos aqueles que o ideal revolucionário promete extirpar.
Mesmo se não levarmos em conta as matanças deliberadas e considerarmos apenas a performance revolucionária
desde o ponto de vista econômico, nenhuma outra causa social ou natural
criou jamais tanta miséria e provocou tantas mortes por desnutrição
quanto os regimes revolucionários da Rússia, da China e de vários países
africanos.
Qualquer que venha a ser o futuro da
espécie humana e quaisquer que sejam as nossas concepções pessoais a
respeito, a mentalidade revolucionária tem de ser extirpada radicalmente
do repertório das possibilidades sociais e culturais admissíveis antes
que, de tanto forçar o nascimento de um mundo supostamente melhor, ela
venha a fazer da História humana inteira um gigantesco aborto.
Embora as distintas ideologias
revolucionárias sejam todas, em maior ou menor medida, ameaçadoras e
daninhas, o mal delas não reside tanto no seu conteúdo específico ou nas
estratégias de que se servem para realizá-lo, quanto no fato mesmo de
serem revolucionárias no sentido aqui definido.
O socialismo e o nazismo são
revolucionários não porque propõem respectivamente o predomínio de uma
classe ou de uma raça, mas porque fazem dessas bandeiras os princípios
de uma remodelagem radical não só da ordem política, mas de toda a vida
humana. Os malefícios que prenunciam tornam-se universalmente
ameaçadores porque não se apresentam como respostas locais a situações
momentâneas, mas como mandamentos universais imbuídos da autoridade de
refazer o mundo segundo o molde de uma hipotética perfeição futura. A
Ku-Klux-Klan é tão racista quanto o nazismo, mas não é revolucionária
porque não tem nenhum projeto de alcance mundial. Por essa razão seria
ridículo compará-la, em periculosidade, ao movimento nazista.
Por isso mesmo é preciso enfatizar que o
sentido aqui atribuído ao termo “revolução” é ao mesmo tempo mais amplo e
mais preciso do que a palavra tem em geral na historiografia e nas
ciências sociais presentemente existentes. Muitos processos
sócio-políticos usualmente denominados “revoluções” não são
“revolucionários” de fato, porque não participam da mentalidade
revolucionária, não visam à remodelagem integral da sociedade, da
cultura e da espécie humana, mas se destinam unicamente à modificação de
situações locais e momentâneas, idealmente para melhor. Não é
necessariamente revolucionária, por exemplo, a rebelião política
destinada apenas a romper os laços entre um país e outro. Nem é
revolucionária a simples derrubada de um regime tirânico com o objetivo
de nivelar uma nação às liberdades já desfrutadas pelos povos em torno.
Mesmo que esses empreendimentos empreguem recursos bélicos de larga
escala e provoquem modificações espetaculares, não são revoluções,
porque nada ambicionam senão à correção de males imediatos ou mesmo o
retorno a uma situação anterior perdida.
O que caracteriza inconfundivelmente o
movimento revolucionário é que sobrepõe a autoridade de um futuro
hipotético ao julgamento de toda a espécie humana, presente ou passada. A
revolução é, por sua própria natureza, totalitária e universalmente
expansiva: não há aspecto da vida humana que ela não pretenda submeter
ao seu poder, não há região do globo a que ela não pretenda estender os
tentáculos da sua influência.
Se, nesse sentido, vários movimentos
político-militares de vastas proporções devem ser excluídos do conceito
de “revolução”, devem ser incluídos nele, em contrapartida, vários
movimentos aparentemente pacíficos e de natureza puramente intelectual e
cultural, cuja evolução no tempo os leve a constituir-se em poderes
políticos com pretensões de impor universalmente novos padrões de
pensamento e conduta por meios burocráticos, judiciais e policiais. A
rebelião húngara de 1956 ou a derrubada do presidente brasileiro João
Goulart, nesse sentido, não foram revoluções de maneira alguma. Nem o
foi a independência americana, um caso especial que terei de explicar em
outro lugar. Mas sem dúvida são movimentos revolucionários o darwinismo
e o conjunto de fenômenos pseudo-religiosos conhecido como Nova Era.
Todas essas distinções terão de ser explicadas depois em separado e
estão sendo citadas aqui só a título de amostra.
Publicado na revisa Vila Nova.
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