Quem pode ser mais patético do que aquele que usa como ofensa o próprio termo que mais apropriadamente o define?
A baixeza de caráter sempre acaba transparecendo na deformidade da linguagem, especialmente sob a forma dos cacoetes de estilo e da impropriedade do vocabulário.
Em artigo recente e muito oportuno, Roberto
Romano lembra um desses cacoetes, que se tornou marca registrada da
linguagem fascista: o uso de aspas pejorativas como armas de extermínio
das reputações. Quando não se sabe o que alegar contra um sujeito,
apela-se a esses sinais gráficos na esperança de que, fincados dos dois
lados de um qualificativo -- mesmo que seja o simples nome de uma
atividade profissional --, valham magicamente como sua total e
peremptória negação. Entre aspas, a vitória transfigura-se em derrota, o
talento em inépcia, o advogado em rábula, o general em recruta e o
santo em charlatão: pelo menos tal é a expectativa dos aspeadores. Disso
deveria saber eu, que cheguei a ser, no dizer de Bruno Tolentino, “o
mais aspeado filósofo brasileiro” -- mas por que deveria preocupar-me
com um truque bobo que só revela, nos seus praticantes, a mentalidade
pueril e um toque de analfabetismo funcional? Escritores que se prezam
empregam as aspas para indicar citações, conotações alusivas ou
ambigüidades deliberadas, e evitam dar-lhes sentido pejorativo porque
sabem que isso é só para aqueles a quem a natureza avara negou até mesmo
o dom de insultar criativamente, tão abundante na linguagem popular do
Brasil.
Mas
outra deformidade típica, endêmica nos jornais e nas cátedras deste
país, é o vício de forçar um termo a carregar-se de conotação ofensiva
até fazê-lo perder o último vestígio de referência à sua significação
própria. O exemplo mais renitente é o uso comunista do adjetivo
“fascista”: na ânsia de associar a seus adversários a lembrança sinistra
das ditaduras de Hitler e Mussolini, estampam-no com entusiasmo feroz
no rosto dos que defendem a liberdade de mercado, a redução do poder do
Estado, a independência entre os poderes e as garantias legais da
democracia parlamentar – o oposto simétrico de qualquer coisa que
mereça, na escala objetiva, o nome de “fascismo”.
Não
por coincidência, as pessoas que fazem isso são as mesmas que mais
freqüentemente apelam ao recurso fascista das aspas pejorativas.
Outro exemplo é o uso da palavra “ideólogo” como rótulo depreciativo.
“Ideologia”
é um sistema de idéias destinadas não a descrever ou analisar a
realidade, mas a criar e fortalecer a unidade de um partido, grupo ou
movimento político e a orientar, justificando-os e enaltecendo-os, os
seus planos para a tomada e manutenção do poder.
Basta
compreender essa definição para perceber imediatamente que aqueles que
tentam rebaixar o meu trabalho rotulando-me “ideólogo” são nada mais que
charlatães e difamadores desprovidos do mais mínimo fragmento de
credibilidade.
Para
que essa rotulação tivesse algum valor, seria preciso que os
rotuladores pudessem responder às seguintes perguntas: Que partido? Que
grupo? Que movimento? Que planos?
Não podem.
O
público a que me dirijo não constitui um grupamento político nem mesmo
num sentido remotamente analógico, não tem nenhuma unidade
organizacional ou atividade militante e nem sequer encontros ou
congressos onde pudesse sonhar com uma vaga tomada do poder num futuro
hipotético e inalcançável. E por mais meticulosamente que se examinem os
meus escritos e aulas, não se encontrará aí o menor esboço de algum
plano nesse sentido.
Quanto
aos grupos e classes existentes para além das fronteiras desse círculo,
é mais que óbvio que não me dirijo a nenhum deles em especial, não os
represento no mais mínimo que seja e não tenho sequer por eles um pouco
de afeição ou respeito, condição sine qua non para que desejasse
orientá-los ou liderá-los politicamente. Seria eu o ideólogo da
burguesia, essa classe que não sonha senão em abrigar-se à sombra do
Estado? Dos militares, que se rebaixaram à condição de funcionários
públicos, totalmente esquecidos de que seu dever de lealdade é para com o
Estado e não para com qualquer partido que o açambarque e prostitua a
serviço de seus próprios interesses? Dos estudantes, que só pensam em
comunismo, sexo e drogas? Dos pobres e oprimidos, que não lêm uma só
linha do que escrevo e só acreditam no Big Brother Brasil?
Ricos
ou pobres, fardados ou à paisana, meus leitores, ouvintes e alunos são
indivíduos isolados, sem a menor ambição ou possibilidade de agir
politicamente.
Chamar
“ideólogo” a quem há anos se dirige a essas pessoas sem lhes acenar nem
de longe com algum projeto político é esvaziar a palavra “ideologia” de
todo significado substantivo para fazer dela um grotesco arremedo de
insulto, um porrete de isopor, uma faca sem cabo nem lâmina que só expõe
ao ridículo o seu usuário, especialmente quando este é, ele próprio, o
porta-voz notório de um grupo político atuante e constituído. Quem pode
ser mais patético do que aquele que usa como ofensa o próprio termo que
mais apropriadamente o define?
Não
por coincidência, os que se entregam a esse exercício de masoquismo
inconsciente não estão só na esquerda, como os srs. Caio Navarro de
Toledo, Adalberto Monteiro, Altamiro Borges ou a equipe do Vermelho.org,
mas também alguns na direita, como o prof. Alexandre Dugin ou os srs.
Rodrigo Constantino e Joel Pinheiro.
Em
vista do exposto, a esses todos a única resposta merecida seria
“Ideólogo é a mãe”, se justamente o último dos mencionados não
constituísse exceção, de vez que, no seu caso, ideólogo não é a mãe e
sim o pai – ideólogo do partido da Marina Silva.Publicado no Diário do Comércio.
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