Ferreira Gullar – Folha de São Paulo -
O capitalismo é o regime da desigualdade. Se deixarmos, ele suga a carótida da mãe
Entendo
que alguém, que durante toda a vida tenha tido o marxismo como doutrina
e o comunismo como solução dos problemas sociais, se negue, a esta
altura da vida, a abrir mão de suas convicções. Entendo, mas não
aprovo.Tampouco lhe reconheço o direito de acusar quem o faça de
"vendido ao capitalismo." Aí já é dupla hipocrisia.Tornei-me marxista
por acaso, ao ler o livro de um padre católico sobre a teoria de Marx. É
verdade que o Brasil daquela época estava envolvido na luta pela
reforma agrária e pelo repúdio ao imperialismo norte-americano, que se
assustara com a Revolução Cubana
Confesso que meu entusiasmo por um Brasil
concretamente mais democrático não me permitiu examinar, ponto por
ponto, a doutrina marxista, para nela descobrir equívocos e propósitos
inviáveis.
Não ignorava, claro, as acusações
feitas ao regime soviético, mas atribuía aqueles erros à fase stalinista
que, após a denúncia feita por Khruschov, havia sido superada. A
verdade é que essas questões -sobretudo depois que os militares se
instalaram no poder- não estavam em discussão: o fundamental era
derrotar a ditadura e avançar na direção do regime socialista.
Com
o AI-5, em dezembro de 1968, a repressão aos comunistas e opositores do
regime militar intensificou-se, multiplicando-se os casos de tortura e
assassinatos.
Tive que deixar o país e ir para a
URSS. Convivendo ali apenas com militantes brasileiros e de outros
países, pouco pude conhecer da vida dos cidadãos soviéticos, a não ser
daqueles que pertenciam à máquina oficial.
De Moscou fui para Santiago do Chile, aonde cheguei poucos meses antes da queda de Allende.
Mergulhado
no conflito ideológico que opunha as duas potências antagônicas -URSS e
EUA-, não me foi possível ver com maior clareza o que de fato acontecia
nem muito menos os erros cometidos também por nós, adversários do
imperialismo norte-americano. Isso se tornou evidente para mim, anos
mais tarde, quando o sistema socialista ruiu como um castelo de cartas.
Tornou-se
então impossível não ver o que de fato ocorria. O regime soviético não
ruíra porque um exército inimigo invadira o país. Pelo contrário, foi o
povo russo mesmo que pôs fim ao sistema e o fez porque ele fracassara
economicamente.
Não
obstante, muitos companheiros se negavam a aceitar essa evidência.
Passaram a atribuir a Gorbatchov a culpa pelo fim do comunismo, como se
isso fosse possível. A verdade é que as pessoas, de modo geral, têm
dificuldade em admitir que erraram, que passaram anos de sua vida (e
alguns pagaram caro por isso) acreditando numa ilusão.E, além do mais, é
compreensível, uma vez que o socialismo propunha derrotar um sistema
econômico injusto e pôr em seu lugar outro, fundado na igualdade e na
justiça social. É verdade também que em alguns países onde o socialismo
se implantara muito foi feito em busca dessa igualdade. Não obstante,
algo estava errado ali, já que o regime era obrigado a coibir a livre
opinião e impedir que as pessoas saíssem livremente do país. A pergunta é
inevitável: alguém, que vive no paraíso, quer a todo custo fugir dele?
Tampouco
o regime capitalista é o paraíso. Longe disso. A diferença é que, dele,
podemos sair se o decidirmos, criticá-lo e, pelo voto, mudar o
governante. Mas não é só isso. O capitalismo é dinâmico e criativo
porque é a expressão da necessidade humana de tudo fazer para melhorar
de vida.
Neste momento mesmo, milhões de pessoas estão inventando meios e modos de criar empresas, realizar
empreendimentos que lhes possibilitem lucrar e enriquecer.
Como
poderia competir com isso um regime cujo processo econômico era
dirigido por meia dúzia de burocratas, os quais, em nome do Partido
Comunista, tudo determinavam e decidiam? Isso conduziu o comunismo ao
fracasso e levou a China a tornar-se capitalista para escapar do
desastre que pôs fim ao sistema socialista mundial.
O
capitalismo, por sua vez, é o regime da exploração e da desigualdade,
precisamente porque se funda no egoísmo e na busca do lucro máximo. Se
deixarmos, ele suga a carótida da mãe.
O
grande problema, portanto, é este: como estimular a iniciativa criadora
de riqueza e, ao mesmo tempo, valer-se da riqueza criada para reduzir a
desigualdade.
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