Confira a íntegra da entrevista concedida pela blogueira cubana Yoani Sánchez a Cynara Menezes:
foto agência brasil
CartaCapital–Você é de esquerda ou de direita?
Yoani Sánchez – Me considero uma pessoa pós-moderna, ou seja,
considero que os limites e as fronteiras entre os fenômenos que vivemos
não estejam tão claros. Quando alguém me pergunta se sou jornalista,
digo que estou no meio do caminho entre o jornalismo, a literatura, o
ativismo cívico, talvez algo de informática. Isso faz com que o produto
final do meu trabalho seja um híbrido. O mesmo ocorre a respeito de
temas que definem as posições ideológicas. Por exemplo: sou uma
defensora da liberdade de expressão, sobretudo da liberdade de imprensa.
Para muitas pessoas isso me colocaria ao lado dos liberais, do
liberalismo. No entanto, também sou uma grande defensora desse setor que
há em toda sociedade, mais desfavorecido. Nasci num solar de Havana,
uma casa coletiva. Um solar é uma casa que foi linda, mas que com os
anos foi dividida e vivem muitas famílias, com banheiros coletivos e
cozinha coletiva. ...
CC –Aqui dizemos cortiço.
YS –
Ainda hoje digo a meu marido: ‘Posso ir ao banheiro?’ E
ele responde: ‘Mas claro, vai. Precisa pedir?’. Porque quando eu era
pequena tinha que perguntar se podia ir e sempre estava ocupado… Minha
família é de ferroviários, por isso me preocupo muito com as pessoas
pobres. Me preocupa a situação que vivem agora os mais desfavorecidos do
meu país com todas estas reformas de corte neoliberal que Raúl Castro
está fazendo. Por um lado estão abrindo espaços, estão criando
oportunidades para o setor privado – em Cuba se diz ‘setor por conta
própria’, mas é o setor privado. Por outro, estão criando grandes
diferenças sociais, muita gente está ficando desprotegida materialmente,
gente que está perdendo seus trabalhos, que não tem acesso à moeda
conversível. Vou contar uma pequena história: em Cuba, temos muitos
problemas com o tema da qualidade da educação, porque os salários dos
professores são muito baixos e pouca gente quer ser professor. Então
está acontecendo um fenômeno, as famílias estão pagando ‘repassadores’,
professores extras nas horas que os estudantes não estão na escola. E já
começa a se notar, do ponto de vista acadêmico, a diferença entre os
estudantes cuja família tem dinheiro para pagar um professor adicional e
a família que não tem. A compra e venda de casas, uma medida largamente
desejada, no entanto está provocando a redistribuição classista dos
bairros. Gente que tem mais dinheiro vai para os melhores bairros e os
que tem menos, para a periferia, aos piores edifícios. Isso está se
fazendo sem levar em conta uma política de transparência e sem uma
política de proteção a essas pessoas. Se continuar assim, teremos uma
Cuba tão neoliberal quanto qualquer outro país, com as grandes
diferenças e os grandes abismos. Nesse ponto, eu poderia ser tachada de
esquerda. Creio que o Estado tem a obrigação de proteger as pessoas mais
desfavorecidas materialmente, para que não entrem na competição da vida
com desvantagens. O Estado tem a obrigação de garantir um ensino
público de qualidade pelo menos até determinado nível escolar. Tem
também o dever de garantir uma ajuda aos familiares. Agora, eu não creio
que em Cuba haja um socialismo. Quando era pequena, tive que estudar
muito as teorias marxistas, leninistas, a economia socialista, manuais
que eram muito abundantes até alguns anos –agora diminuiu. E recordo que
praticamente a primeira página desses manuais dizia que uma sociedade
socialista ou comunista era onde os meios de produção estavam nas mãos
do proletariado. Era como uma fórmula. O que acontece em Cuba? Temos um
só patrão que se chama Estado ou governo ou Partido Comunista ou como
você queira chamá-lo. Esse patrão tem os meios de produção em suas mãos,
contrata os operários e lhes toma uma enorme mais-valia: entre o valor
da produção e o salário que recebe o operário há um abismo. Imagine que
em Cuba existem pessoas que trabalham confeccionando charutos e cada
charuto pode custar depois, no mercado, um mínimo de 30 pesos
conversíveis, mas essa pessoa recebe por mês um salário abaixo disso. Ou
seja, a mais-valia é total, com o agravante de que você não pode
protestar. Nós temos um patrão capitalista, a diferença é que nosso
patrão é uma família, um grupo de militares que tem um discurso
aparentemente de esquerda. Mas quando você observa bem, há muito de
capitalismo selvagem e inclusive de feudalismo medieval.
CC – Você preferia que a revolução cubana não tivesse acontecido?
YS – Não, não. Penso que a revolução foi um bom detonante para a energia. O problema foi quando a revolução se devorou a si mesma e deixou de ser uma revolução.
CC – Quando isso ocorreu?
YS – Essa é uma grande discussão. Por exemplo: meu marido, que é jornalista e é mais velho do que eu, diz que a revolução terminou em 1968, porque neste ano Fidel Castro aplaudiu a entrada dos tanques soviéticos em Praga. E isso foi determinante: como uma revolução rebelde permite que um império –ainda que seja comunista é um império– termine com um processo nacional de rebeldia, de transformação? Outras pessoas dizem que a data foi 1980, com o êxodo de Mariel, quando mais de 120 mil cubanos disseram ao regime: ‘Não gostamos deste sistema’. Essa foi uma maneira de votar. Minha mãe diz que para ela a revolução terminou em 1989, o ano em que fuzilaram o general Arnaldo Ochoa, que estava vinculado ao narcotráfico, mas também foi um julgamento político. Um julgamento a um setor que poderia, dentro dos próprios militares, provocar uma mudança. Ou seja, as datas são muitas. Eu não conheci a revolução. Nasci em 1975, sob muito estatismo, sovietização, rigidez. Aqueles rebeldes descidos da Serra Maestra, que pareciam tão jovens, com seus escapulários, tão reformistas, tão sonhadores, no momento em que nasci já eram uns burocratas de abdômen avantajado e muito cuidadosos cada vez que davam um passo para que nada lhes fugisse do controle. A revolução, sim, a revolução foi uma necessidade de muitas pessoas. E muita gente acreditou na revolução e muita gente se sentiu traída com a derrota final da revolução.
CC – Mas e se não tivesse ocorrido o embargo norte-americano? Poderia ser diferente, não?
YS – O embargo, sem dúvida, fez com que a revolução se radicalizasse e deu ao governo um argumento para explicar tudo. Mas eu não creio que realmente o tema das liberdades fosse diferente sem o embargo. Simplesmente vivemos sob um sistema pensado para que o indivíduo não possa ser livre, porque se é livre, começa a perguntar, a questionar, a se associar, a buscar informação e o sistema não funciona, porque é um sistema que está baseado em que o mundo é um inferno e Cuba é um paraíso. ‘Você tem que se conformar com o zoológico porque lá fora é a selva’: essa é a dicotomia que explora o governo cubano. Quando a pessoa abre os olhos, lê outra literatura, contacta com outras pessoas, essa dicotomia começa a ruir, já não funciona.
CC – Para nós, o que parece injusto é que um país gigante tente esmagar durante anos uma ilha pequena só porque decidiu fazer diferente e ser comunista.
YS – Esse é o símbolo de Davi contra Golias. Mas o Davi que eu conheço se chama povo cubano. E o Golias que faz a minha vida difícil é o governo de Cuba.
CC – Você não teme que acabe o regime dos Castro e Cuba caia em mãos dos cubanos de Miami, que são políticos da pior direita inclusive para os Estados Unidos? Ou seja, pular da frigideira direto para o fogo?
YS – A Cuba do futuro tem muitos riscos, mas não é por isso que vamos nos conformar com o presente. Não é uma atitude de esquerda se paralisar por temor ao futuro. A atitude de esquerda é: vamos à mudança! E depois encontraremos soluções para os problemas que irão surgindo. Não tenho esse temor, mesmo porque o exílio de Miami também é um estereótipo. Agora mesmo é um exílio muito plural. Passaram-se 54 anos desde que começou o exílio, os que se foram em 1959 ou nos anos 1960 já são octogenários. Ao exílio ou à emigração, como chamam agora, chegou uma nova geração com outra mentalidade. Inclusive, nas últimas votações para presidente, um amplo setor da Flórida votou em Barack Obama. No último ano, 400 mil cubanos viajaram à ilha, vindos principalmente dos EUA. É um sinal que lhes importa mais agora os vínculos familiares do que o tema político ou econômico. Não tenho esse temor realmente de que ocorra a miamização de Cuba, primeiro porque não creio que o dilema nacional seja os Castro hoje ou Miami amanhã. Em meu país há gente talentosa, com muito critério e muito patriotismo. O patriotismo não tem nada a ver com o governo atual ou o sistema comunista. Amar Cuba é outra coisa, não é amar uma ideologia, é amar os coqueiros, José Martí, a música, viver ali. É preciso diferenciar isso. E penso que o desafio do futuro será aproveitar esse conhecimento, esse capital que tem os mais de 2 milhões de emigrados cubanos que hoje não têm nem mesmo o direito ao voto em seu país natal, conseguir que esse exílio se integre à vida nacional, mas sem que esmaguem a nós, os cidadãos que vivemos ali. Um dos grandes temas da Justiça do futuro será o tema das devoluções de propriedades. Outro será como estruturar o tema empresarial para que os emigrados não tenham vantagens sobre os nacionais que não temos capitais. Mas de verdade não temo isso. Tem muita gente que diz: ‘você não teme que chegue o McDonald’s em Cuba?’ Não, não temo, chegará. O que me preocupa muito agora é que o operário cubano, para comer um hambúrguer, precise trabalhar dois dias completos. Não me importa que se chame McDonald’s ou McCastro, mas que as pessoas tenham a oportunidade de ter um salário digno que lhes permita escolher entre comer vegetais ou um hambúrguer.
CC – Você fala muito de direitos humanos. O que acha dos presos norte-americanos em Guantánamo?
YS – É um horror dos EUA, uma ilegalidade. Infelizmente não posso fazer nada quanto a isso.
CC – O que é o melhor que pode acontecer em Cuba? Haver eleições?
YS – Acho que sim. Mas é importante que a pressão venha da cidadania, que as próprias estruturas que estão nascendo, os grupos –todos pacíficos– da oposição, da sociedade civil, o jornalismo independente, consigam pressionar o governo. Isso seria o ideal. Pressionar para que comecem logo uma série de reformas não só no plano econômico como político. Creio que o principal é despenalizar a divergência. Me dizem: ‘bom, isso não é uma lei’. Mas é importante. Em Cuba tem muita gente talentosa que tem iniciativas e programas de mudança pensados na nação, mas que agora tem medo de divulgá-los. Conheço economistas que tem programas para sanear a economia, como eliminar a dualidade monetária, mas dizem: ‘eu não posso mostrar isso porque vão me acusar de ser da CIA, do império’. Muita gente tem medo de dizer suas propostas. Quando o governo cubano, Raúl Castro, tome o microfone e diga ‘neste país nunca mais ninguém vai ser nem encarcerado, nem golpeado, nem estigmatizado por pensar diferente do governo, por ter outra tendência política ou outra opinião sobre a economia ou as finanças’, nesse dia tudo começa a mudar porque as pessoas vão começar a se atrever a dizer o que pensam.
CC – Se Cuba vai tão mal, por que as pessoas não se revoltam?
YS – As pessoas em Cuba se rebelam emigrando. A revolta cubana não está na praça Tahrir, está do lado de fora dos consulados. É muito diferente. No Egito e na América do Norte se acumulou uma massa de jovens inconformados com o sistema, com essas ditaduras de muitos anos. Em Cuba temos um grande déficit de jovens, de natalidade. Cuba tem a natalidade um país de primeiro mundo e a emigração de um país de terceiro. Ou seja, a população está entre duas tendências. Uma, parece, muito positiva, e outra, muito negativa. Não há essa população jovem tão grande. Por outro lado, a tecnologia está num estado muito rudimentar. Para a primavera árabe, foram determinantes as redes sociais, os telefones celulares, blackberries.
CC – Isso, sim, tem a ver com o embargo… A tecnologia não chega a Cuba.
YS – Mais ou menos. Por um lado, sim, pela possibilidade de comprar a tecnologia. Mas a tecnologia é vendida na China, no Japão, no Panamá. Há um monte de telefones chineses. O problema tem a ver com os custos da telefonia celular em Cuba. O telefone celular se paga com pesos conversíveis, não se paga com moeda nacional. Um SMS que se envia a um celular estrangeiro custa um peso conversível em Cuba, enquanto o salário médio mensal são 20 pesos conversíveis. É uma limitação econômica. Há cerca de 1,8 milhões de celulares para uma população de 8 milhões. Essa infra-estrutura de convocatória online, que funcionou muito na primavera árabe, está em estado muito primitivo em Cuba. Outra limitação é que as pessoas não têm consciência cívica. Durante anos o Estado se ocupou tanto de tudo que muitas pessoas, contemporâneas minhas, sentem que o país não lhes pertence. O país é do governo, é do partido, de Fidel. Estão apáticas. Quando têm um pouco de rebeldia, não a usam para enfrentar um repressor na rua, mas para enfrentar um tubarão no estreito da Flórida. Creio que nós, cubanos, votamos com os pés. Não protestamos, mas votamos indo-nos do país.
CC – Você crê que agora que mudaram as leis migratórias pode haver um êxodo?
YS – Há muita gente planejando ir embora. Inclusive nos dias em que estive organizando os vistos, vi muita gente jovem do lado de fora dos consulados. É difícil, porque há muitos requisitos para conseguir um visto, mas os cubanos são engenhosos. Então o que estão fazendo? Vendem suas propriedades, a casa, o automóvel, e com esse dinheiro compram uma passagem para um país que não pede visto. Um dos primeiros sinais é que na Aeroflot, que voa de Cuba a Moscou, se esgotaram todos os bilhetes na primeira semana. Por que? Porque a Rússia não pede visto para os cubanos. Então vão para aí e usam este país como trampolim para ir a outra parte. Sim, vai haver uma saída em massa.
CC – Além da liberdade de expressão, o que mais você inveja no capitalismo?
YS – Eu vivo sob um capitalismo de Estado. Vivi também em outras sociedades, passei dois anos na Suíça, e lembro que me impactava muito o acesso à informação, poder escolher um jornal ou outro. E também o estímulo que o cidadão tem para prosperar. Em meu país, as pessoas sabem que trabalhar mais não vai lhes dar uma vida melhor. Então há muita apatia para trabalhar. Um pouco de competição não é ruim, faz a pessoa tentar se superar, melhorar, subir. Em Cuba vivemos todo o contrário. Tem gente que pensa: ‘para que trabalhar, se de todas as maneiras com o subsídio alimentar posso viver, muito mal, mas posso?’ Foi desestimulada a criação de riqueza nacional e pessoal, e isso me parece que tem que ser estimulado. Com a empresa privada, a pequena e média empresa, o cooperativismo, que será muito importante para a transição em Cuba. A criação de cooperativas de trabalhadores, agrícolas e industriais.
CC – Escutei você falar relativamente bem de Mariela Castro. Poderia ser uma saída ao regime que se tornasse presidenta, sucedendo seu pai?
YS – Eu não acredito que ela queira. Me parece que está mais focada na sexualidade e em seu trabalho no centro de educação sexual. Sim, poderia ser uma maneira de moderar o regime. Mas creio que criaria muito inconformismo nas pessoas, seria uma evidência de nepotismo muito clara: do irmão mais velho ao caçula e à filha deste. Nos deixaria um sabor tão amargo na boca que, por melhor que fosse sua presidência, sempre nos ficaria a impressão de que somos um reino que se herda consanguineamente.
CC – E se fossem convocadas eleições e ela se candidatasse?
YS – Eu não votaria nela. Ainda que faça um trabalho muito bom do ponto de vista da sexualidade e do respeito às diferenças, me parece uma pessoa com sérias dificuldades para dialogar. Todas as vezes que tentei um debate de ideias, recebi respostas muito agressivas. Quando um político age assim, tem muitas possibilidades de se converter em um ditador.
CC – Você falou que em Cuba a imprensa é monopólio estatal, já que só há um jornal, o Granma. Você sabe que no Brasil seis famílias detêm 70% da imprensa? Também é monopólio, não?
YS – Me parece uma boa razão para que os brasileiros lutem para mudar essa situação. Eu estou lutando no meu país para mudar a minha.
YS – Não, não. Penso que a revolução foi um bom detonante para a energia. O problema foi quando a revolução se devorou a si mesma e deixou de ser uma revolução.
CC – Quando isso ocorreu?
YS – Essa é uma grande discussão. Por exemplo: meu marido, que é jornalista e é mais velho do que eu, diz que a revolução terminou em 1968, porque neste ano Fidel Castro aplaudiu a entrada dos tanques soviéticos em Praga. E isso foi determinante: como uma revolução rebelde permite que um império –ainda que seja comunista é um império– termine com um processo nacional de rebeldia, de transformação? Outras pessoas dizem que a data foi 1980, com o êxodo de Mariel, quando mais de 120 mil cubanos disseram ao regime: ‘Não gostamos deste sistema’. Essa foi uma maneira de votar. Minha mãe diz que para ela a revolução terminou em 1989, o ano em que fuzilaram o general Arnaldo Ochoa, que estava vinculado ao narcotráfico, mas também foi um julgamento político. Um julgamento a um setor que poderia, dentro dos próprios militares, provocar uma mudança. Ou seja, as datas são muitas. Eu não conheci a revolução. Nasci em 1975, sob muito estatismo, sovietização, rigidez. Aqueles rebeldes descidos da Serra Maestra, que pareciam tão jovens, com seus escapulários, tão reformistas, tão sonhadores, no momento em que nasci já eram uns burocratas de abdômen avantajado e muito cuidadosos cada vez que davam um passo para que nada lhes fugisse do controle. A revolução, sim, a revolução foi uma necessidade de muitas pessoas. E muita gente acreditou na revolução e muita gente se sentiu traída com a derrota final da revolução.
CC – Mas e se não tivesse ocorrido o embargo norte-americano? Poderia ser diferente, não?
YS – O embargo, sem dúvida, fez com que a revolução se radicalizasse e deu ao governo um argumento para explicar tudo. Mas eu não creio que realmente o tema das liberdades fosse diferente sem o embargo. Simplesmente vivemos sob um sistema pensado para que o indivíduo não possa ser livre, porque se é livre, começa a perguntar, a questionar, a se associar, a buscar informação e o sistema não funciona, porque é um sistema que está baseado em que o mundo é um inferno e Cuba é um paraíso. ‘Você tem que se conformar com o zoológico porque lá fora é a selva’: essa é a dicotomia que explora o governo cubano. Quando a pessoa abre os olhos, lê outra literatura, contacta com outras pessoas, essa dicotomia começa a ruir, já não funciona.
CC – Para nós, o que parece injusto é que um país gigante tente esmagar durante anos uma ilha pequena só porque decidiu fazer diferente e ser comunista.
YS – Esse é o símbolo de Davi contra Golias. Mas o Davi que eu conheço se chama povo cubano. E o Golias que faz a minha vida difícil é o governo de Cuba.
CC – Você não teme que acabe o regime dos Castro e Cuba caia em mãos dos cubanos de Miami, que são políticos da pior direita inclusive para os Estados Unidos? Ou seja, pular da frigideira direto para o fogo?
YS – A Cuba do futuro tem muitos riscos, mas não é por isso que vamos nos conformar com o presente. Não é uma atitude de esquerda se paralisar por temor ao futuro. A atitude de esquerda é: vamos à mudança! E depois encontraremos soluções para os problemas que irão surgindo. Não tenho esse temor, mesmo porque o exílio de Miami também é um estereótipo. Agora mesmo é um exílio muito plural. Passaram-se 54 anos desde que começou o exílio, os que se foram em 1959 ou nos anos 1960 já são octogenários. Ao exílio ou à emigração, como chamam agora, chegou uma nova geração com outra mentalidade. Inclusive, nas últimas votações para presidente, um amplo setor da Flórida votou em Barack Obama. No último ano, 400 mil cubanos viajaram à ilha, vindos principalmente dos EUA. É um sinal que lhes importa mais agora os vínculos familiares do que o tema político ou econômico. Não tenho esse temor realmente de que ocorra a miamização de Cuba, primeiro porque não creio que o dilema nacional seja os Castro hoje ou Miami amanhã. Em meu país há gente talentosa, com muito critério e muito patriotismo. O patriotismo não tem nada a ver com o governo atual ou o sistema comunista. Amar Cuba é outra coisa, não é amar uma ideologia, é amar os coqueiros, José Martí, a música, viver ali. É preciso diferenciar isso. E penso que o desafio do futuro será aproveitar esse conhecimento, esse capital que tem os mais de 2 milhões de emigrados cubanos que hoje não têm nem mesmo o direito ao voto em seu país natal, conseguir que esse exílio se integre à vida nacional, mas sem que esmaguem a nós, os cidadãos que vivemos ali. Um dos grandes temas da Justiça do futuro será o tema das devoluções de propriedades. Outro será como estruturar o tema empresarial para que os emigrados não tenham vantagens sobre os nacionais que não temos capitais. Mas de verdade não temo isso. Tem muita gente que diz: ‘você não teme que chegue o McDonald’s em Cuba?’ Não, não temo, chegará. O que me preocupa muito agora é que o operário cubano, para comer um hambúrguer, precise trabalhar dois dias completos. Não me importa que se chame McDonald’s ou McCastro, mas que as pessoas tenham a oportunidade de ter um salário digno que lhes permita escolher entre comer vegetais ou um hambúrguer.
CC – Você fala muito de direitos humanos. O que acha dos presos norte-americanos em Guantánamo?
YS – É um horror dos EUA, uma ilegalidade. Infelizmente não posso fazer nada quanto a isso.
CC – O que é o melhor que pode acontecer em Cuba? Haver eleições?
YS – Acho que sim. Mas é importante que a pressão venha da cidadania, que as próprias estruturas que estão nascendo, os grupos –todos pacíficos– da oposição, da sociedade civil, o jornalismo independente, consigam pressionar o governo. Isso seria o ideal. Pressionar para que comecem logo uma série de reformas não só no plano econômico como político. Creio que o principal é despenalizar a divergência. Me dizem: ‘bom, isso não é uma lei’. Mas é importante. Em Cuba tem muita gente talentosa que tem iniciativas e programas de mudança pensados na nação, mas que agora tem medo de divulgá-los. Conheço economistas que tem programas para sanear a economia, como eliminar a dualidade monetária, mas dizem: ‘eu não posso mostrar isso porque vão me acusar de ser da CIA, do império’. Muita gente tem medo de dizer suas propostas. Quando o governo cubano, Raúl Castro, tome o microfone e diga ‘neste país nunca mais ninguém vai ser nem encarcerado, nem golpeado, nem estigmatizado por pensar diferente do governo, por ter outra tendência política ou outra opinião sobre a economia ou as finanças’, nesse dia tudo começa a mudar porque as pessoas vão começar a se atrever a dizer o que pensam.
CC – Se Cuba vai tão mal, por que as pessoas não se revoltam?
YS – As pessoas em Cuba se rebelam emigrando. A revolta cubana não está na praça Tahrir, está do lado de fora dos consulados. É muito diferente. No Egito e na América do Norte se acumulou uma massa de jovens inconformados com o sistema, com essas ditaduras de muitos anos. Em Cuba temos um grande déficit de jovens, de natalidade. Cuba tem a natalidade um país de primeiro mundo e a emigração de um país de terceiro. Ou seja, a população está entre duas tendências. Uma, parece, muito positiva, e outra, muito negativa. Não há essa população jovem tão grande. Por outro lado, a tecnologia está num estado muito rudimentar. Para a primavera árabe, foram determinantes as redes sociais, os telefones celulares, blackberries.
CC – Isso, sim, tem a ver com o embargo… A tecnologia não chega a Cuba.
YS – Mais ou menos. Por um lado, sim, pela possibilidade de comprar a tecnologia. Mas a tecnologia é vendida na China, no Japão, no Panamá. Há um monte de telefones chineses. O problema tem a ver com os custos da telefonia celular em Cuba. O telefone celular se paga com pesos conversíveis, não se paga com moeda nacional. Um SMS que se envia a um celular estrangeiro custa um peso conversível em Cuba, enquanto o salário médio mensal são 20 pesos conversíveis. É uma limitação econômica. Há cerca de 1,8 milhões de celulares para uma população de 8 milhões. Essa infra-estrutura de convocatória online, que funcionou muito na primavera árabe, está em estado muito primitivo em Cuba. Outra limitação é que as pessoas não têm consciência cívica. Durante anos o Estado se ocupou tanto de tudo que muitas pessoas, contemporâneas minhas, sentem que o país não lhes pertence. O país é do governo, é do partido, de Fidel. Estão apáticas. Quando têm um pouco de rebeldia, não a usam para enfrentar um repressor na rua, mas para enfrentar um tubarão no estreito da Flórida. Creio que nós, cubanos, votamos com os pés. Não protestamos, mas votamos indo-nos do país.
CC – Você crê que agora que mudaram as leis migratórias pode haver um êxodo?
YS – Há muita gente planejando ir embora. Inclusive nos dias em que estive organizando os vistos, vi muita gente jovem do lado de fora dos consulados. É difícil, porque há muitos requisitos para conseguir um visto, mas os cubanos são engenhosos. Então o que estão fazendo? Vendem suas propriedades, a casa, o automóvel, e com esse dinheiro compram uma passagem para um país que não pede visto. Um dos primeiros sinais é que na Aeroflot, que voa de Cuba a Moscou, se esgotaram todos os bilhetes na primeira semana. Por que? Porque a Rússia não pede visto para os cubanos. Então vão para aí e usam este país como trampolim para ir a outra parte. Sim, vai haver uma saída em massa.
CC – Além da liberdade de expressão, o que mais você inveja no capitalismo?
YS – Eu vivo sob um capitalismo de Estado. Vivi também em outras sociedades, passei dois anos na Suíça, e lembro que me impactava muito o acesso à informação, poder escolher um jornal ou outro. E também o estímulo que o cidadão tem para prosperar. Em meu país, as pessoas sabem que trabalhar mais não vai lhes dar uma vida melhor. Então há muita apatia para trabalhar. Um pouco de competição não é ruim, faz a pessoa tentar se superar, melhorar, subir. Em Cuba vivemos todo o contrário. Tem gente que pensa: ‘para que trabalhar, se de todas as maneiras com o subsídio alimentar posso viver, muito mal, mas posso?’ Foi desestimulada a criação de riqueza nacional e pessoal, e isso me parece que tem que ser estimulado. Com a empresa privada, a pequena e média empresa, o cooperativismo, que será muito importante para a transição em Cuba. A criação de cooperativas de trabalhadores, agrícolas e industriais.
CC – Escutei você falar relativamente bem de Mariela Castro. Poderia ser uma saída ao regime que se tornasse presidenta, sucedendo seu pai?
YS – Eu não acredito que ela queira. Me parece que está mais focada na sexualidade e em seu trabalho no centro de educação sexual. Sim, poderia ser uma maneira de moderar o regime. Mas creio que criaria muito inconformismo nas pessoas, seria uma evidência de nepotismo muito clara: do irmão mais velho ao caçula e à filha deste. Nos deixaria um sabor tão amargo na boca que, por melhor que fosse sua presidência, sempre nos ficaria a impressão de que somos um reino que se herda consanguineamente.
CC – E se fossem convocadas eleições e ela se candidatasse?
YS – Eu não votaria nela. Ainda que faça um trabalho muito bom do ponto de vista da sexualidade e do respeito às diferenças, me parece uma pessoa com sérias dificuldades para dialogar. Todas as vezes que tentei um debate de ideias, recebi respostas muito agressivas. Quando um político age assim, tem muitas possibilidades de se converter em um ditador.
CC – Você falou que em Cuba a imprensa é monopólio estatal, já que só há um jornal, o Granma. Você sabe que no Brasil seis famílias detêm 70% da imprensa? Também é monopólio, não?
YS – Me parece uma boa razão para que os brasileiros lutem para mudar essa situação. Eu estou lutando no meu país para mudar a minha.
Por Cynara Menezes
Fonte: Carta Capital -
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