Certas
controvérsias surgidas dias atrás a propósito da blogueira Yoani
Sanchez, uns considerando-a uma heroína, os outros uma perigosa agente
camuflada dos irmãos Castro, podem ser resolvidas facilmente se a ânsia
de julgar ceder o passo ao desejo de compreender.
Os próprios dados do problema trazem a sua solução, bastando ordená-los de maneira razoável.
1.
Desde logo, é insensato pensar que as denúncias da blogueira possam
fazer algum bem ao regime cubano. Mais do que ninguém nos últimos
tempos, ela tem contribuído para divulgar crimes e atrocidades que
mancham de uma vez para sempre a reputação dos irmãos Castro. Quando,
por exemplo, os horrores da ditadura cubana foram expostos no nosso
Congresso Nacional com a visibilidade que lhes deu a visita de Yoani
Sanchez? Imaginar que o governo cubano se alegre com isso é levar longe
demais a conjeturação de planos secretos.
2.
Igualmente insensato é supor que, para fazer o que faz, Yoani tenha de
ser uma direitista ou conservadora ou deva satisfações ideológicas aos
que assim se definem. Ela nunca foi direitista nem conservadora, e não
faz o menor sentido julgar a confiabilidade, a idoneidade ou a utilidade
do seu trabalho por um imaginário dever de fidelidade a uma corrente
política à qual ela nunca pertenceu.
3.
Yoani é uma protegida de George Soros, o que basta para situá-la
historicamente como um instrumento -- voluntário ou involuntário, pouco
importa -- do grande processo de renovação interna do movimento
revolucionário, empenhado em desfazer-se de sua antiga casca bolchevista
para assumir feições mais sedutoras e lançar-se a novas e mais
ambiciosas conquistas.
4.
Nesse processo, os velhos bolchevistas que não puderem se adaptar às
novas condições serão sacrificados, como ciclicamente acontece na
história das revoluções, que progridem e crescem por autodestruição,
limpando-se na sua própria sujeira cuja existência negavam até a
véspera. Nessas transições, o movimento revolucionário se renova e se
fortalece, mas torna-se temporariamente vulnerável, de modo que suas
contradições internas podem ser aproveitadas pelos seus adversários, se
estes não caírem nas duas esparrelas opostas: ou imaginar que os
dissidentes internos do socialismo se converteram todos às idéias
democráticas e conservadoras ou, inversamente, condená-los como falsos
conservadores e agentes infiltrados quando seu discurso não coincide com
aquilo que em outras nações se entende como conservadorismo
“autêntico”.
5.
Malgrado todas as ambigüidades e hesitações no curso do processo, em
última instância é impossível que Yoani sirva igualmente ao novo e ao
velho esquema revolucionário. A opção dela está feita, na prática. Como
ela encara isso subjetivamente é irrelevante no momento. Seus motivos
íntimos só se revelarão mais tarde, e até lá toda tentativa de julgá-la
moralmente, seja para aplaudi-la, seja para condená-la, é ejaculação
precoce.
6.
A destruição do regime cubano é um bem em si, independentemente do seu
futuro aproveitamento pelo movimento revolucionário, cuja nova
encarnação terá de ser combatida num outro quadro de condições,
totalmente diverso da luta contra a ditadura castrista.
7.
Os conceitos descritivos e categorias mentais em que se expressa o
conflito interno em Cuba não coincidem com os da luta politica no resto
do continente latino-americano nem muito menos no Brasil em especial ou
no quadro geral do mundo. Como diria um trotsquista, historicamente
esses fenômenos pertencem a “fases” diferentes. Numa ditadura socialista
totalitária, não é muito urgente saber se seus dissidentes são
conservadores, liberais ou apenas socialistas com pretensões
democráticas desiludidos com algo que lhes parece um pseudo-socialismo –
diferenças que, no quadro de uma democracia, ou mesmo de um regime
meramente autoritário como o brasileiro, podem se tornar essenciais. O
“novo” socialismo do sr. George Soros só existe hoje fora de Cuba. Nesse
quadro, ele representa o inimigo número um da democracia tradicional e
de todos os conservadores. Dentro de Cuba, ele aparece junto com estes
como a quintessência do direitismo reacionário – assim como, mutatis mutandis, no Brasil o socialismo light
dos tucanos é pintado pelo governo com as cores da “extrema direita”. A
diferença é que no Brasil algo à direita dos tucanos ainda pode
subsistir em relativa liberdade, o que não acontece em Cuba. Se o
governo cubano concede a Yoani Sanchez a margem de ação que nega a seus
concorrentes de direita é por dois motivos: teme o apoio internacional
que ela desfruta e, não excluindo a possibilidade de uma mudança de
regime amanhã ou depois, embora lute para evitá-la, está preparado para
aceitá-la com a condição de que ela não destrua de todo a idéia
socialista, mas apenas lhe dê novo formato.
8.
No presente momento, o trabalho de Yoani é da mais alta importância e
não cabe depreciá-lo sob pretexto nenhum. O que importa é estar
preparado para combater, mais tarde, as tentativas de aproveitar os
resultados dele em favor do “novo” movimento revolucionário. Transformar
isso numa luta pró e contra Yoani Sanchez, do ponto de vista da
fidelidade ou infidelidade da blogueira a valores democráticos
tradicionais que objetivamente nunca foram os dela, é processar o cão em
vez do dono que o atiçou. Revelar os compromissos de Yoani com o
movimento revolucionário é decerto útil e necessário, mas fazer disso um
motivo para fulminá-la com anátemas ideológicos é extemporâneo e
contraproducente.
Publicado no Diário do Comércio.
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