A lição de Antonio Ribeiro Netto
Por Elio Gaspari - O globo -
O neurocirurgião que matou o plantão e deixou uma menina com uma bala na cabeça pode aprender o que é ser médico
O neurocirurgião Adão Crespo, do Hospital Salgado Filho, do Rio, faltou ao serviço no dia de Natal. Por isso, a menina Adrielly dos Santos, de 10 anos, ficou oito horas esperando por atendimento adequado. Tinha uma bala na cabeça.
Chamado à polícia, informou que faltava aos
plantões há um mês, porque discordava da escala de serviço. Segundo o
doutor, uma determinação do Conselho Regional de Medicina manda que haja
nos hospitais públicos dois neurocirurgiões por plantão. Como
escalavam-no sozinho, não ia. Lindo.
O Cremerj determina que os plantonistas sejam dois e o neurocirurgião decide que é dois ou nada, passa o dia de Natal em casa e Adrielly fica com a bala na cabeça.
O Cremerj determina que os plantonistas sejam dois e o neurocirurgião decide que é dois ou nada, passa o dia de Natal em casa e Adrielly fica com a bala na cabeça.
Vale
registrar que é uma temeridade botar um caso como o da menina nas mãos
de um só neurocirurgião. Seria necessário que no plantão houvesse pelo
menos um residente para assisti-lo. Bingo: o sistema público do Rio não
tem mão de obra para respeitar essa necessidade.
Se
o doutor Crespo, ou qualquer outro, quer se rebelar contra a má
qualidade dos serviços públicos de saúde, tem dois caminhos: pede as
contas ou usa o seu tempo disponível para infernizar a vida do prefeito
Eduardo Paes, do governador Sérgio Cabral, do ministro Alexandre Padilha
e da doutora Dilma. Pode até protestar contra o Papa, mas não pode
faltar ao serviço, nem se defender na polícia com o manto branco do
corporativismo médico.
Crespo e todos os seus
similares deveriam ser convidados a preparar uma biografia de um
colega: Antonio Ribeiro Netto. Durante mais de 40 anos, até sua morte,
nos anos 90, foi cirurgião de tórax do Hospital Souza Aguiar. Lá, o CTI
da neurocirurgia chamava-se “Coreia”. Não sabia quanto ganhava. Quando
se aborrecia com as questões do cotidiano, ia para o hospital adiantar
procedimentos cirúrgicos. Em 1993, vendo a medicina pública do Rio
assolada por “escolhas de Sofia”, nas quais os médicos eram obrigados a
decidir quem morreria por falta de atendimento, ele olhava para o
descalabro e dizia: “A culpa é minha. Fui míope. Talvez se eu tivesse
ido para os jornais atacar o governador, talvez se eu tivesse entrado
aos gritos no gabinete do secretário, não sei. A verdade é que deixei a
peteca cair.” Dizia isso sabendo que nunca faltara a plantão. Hoje
Ribeiro Netto é nome de policlínica, mas seu exemplo perdeu-se na poeira
do descaso.
As guildas médicas são incapazes
de diagnosticar as patologias individuais de seus profissionais. Algo
como se um doutor, diante de um caso de pneumonia (o neurocirurgião que
falta ao serviço), quisesse discutir o aspecto epidemiológico do
problema (a falta de dois profissionais no plantão). Nisso, Adrielly
ficou com a bala na cabeça. O Conselho Regional de Medicina faz bonito
quando pede dois neurocirurgiões, mas fica numa posição troncha quando
um deles se justifica usando sua recomendação para deixar o plantão sem
neurocirurgião algum.
Já os presidentes,
ministros, governadores e prefeitos dedicam-se a uma espetacularização
da ruína. Sérgio Cabral chegou ao governo dizendo que a medicina pública
do Rio praticava um “genocídio” e o prefeito Eduardo Paes disse que
Adão Crespo é “um delinquente”. E o chefe do doutor, a quem ele diz ter
comunicado que não iria aos plantões?
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