A cobiça cega e, o Estado surdo
José Nêumanne
O Estado de S. Paulo
O incêndio na boate Kiss, em Santa Maria (RS), resultou da associação perversa e criminosa da cobiça cega de um capitalismo de vale-tudo, sem código de conduta nem esteio moral, com um Estado estroina, corrupto, incompetente e incapaz de garantir ordem, paz, segurança pública, a vida e a integridade física de seus cidadãos.
O Estado de S. Paulo
O incêndio na boate Kiss, em Santa Maria (RS), resultou da associação perversa e criminosa da cobiça cega de um capitalismo de vale-tudo, sem código de conduta nem esteio moral, com um Estado estroina, corrupto, incompetente e incapaz de garantir ordem, paz, segurança pública, a vida e a integridade física de seus cidadãos.
Não
se trata de um fenômeno exclusivo do subdesenvolvimento endêmico do
qual países emergentes como o nosso parecem nunca sair, principalmente
no que concerne ao espírito e às mentalidades.
O
mundo inteiro foi assaltado pela brutalidade da busca incessante da
fortuna fácil e do desprezo ao trabalho e à conduta moral que deveria
reger a vida em sociedade neste século 21, depois da visita à Lua e do
telefone portátil, que conecta seu usuário com as notícias do dia, as
cotações do mercado de capitais e as manifestações mais escabrosas da
miséria humana.
Incêndios em boates são comuns e ocorrem em
ambientes fechados e abarrotados de material inflamável, produzindo
assim vítimas de morte às centenas e crônicas de grosseria e
insensibilidade, antes, e de comoção e solidariedade, depois.
No
Brasil, a peculiaridade apresenta-se em algo que os comentaristas de
arbitragem de futebol e os membros da Academia de Cinema de Hollywood
chamariam de "o conjunto da obra".
O
incêndio da boate gaúcha ocorreu numa cidade que homenageia o espírito
que se identifica com o afeto materno, a mãe do Salvador, que reúne em
sua aura toda a luz da generosidade, do altruísmo, da capacidade de
renúncia e da piedade que um mortal é capaz de sentir e expressar.
O
momento também é peculiar nosso: a maior seca dos últimos 30 anos no
semiárido nordestino torna a escassez ainda mais cruel, as famílias
desabrigadas pelas enxurradas na Serra e na Baixada Fluminenses ainda
não têm um teto para abrigá-las e o sangue de policiais e inimigos da
lei continua empoçado no asfalto precário das vielas da periferia da
maior cidade da América do Sul.
Às vésperas
do carnaval, intempéries naturais, brutalidades pessoais e deficiências
institucionais reduzem a expectativa de vida de seres humanos e animais
numa tragédia que se repete e se amplia indefinidamente.
Nunca
se saberá quantas das mais de 230 vidas ceifadas pelo fogo na boate
Kiss seriam poupadas se seus proprietários houvessem obedecido às normas
de segurança de edificações às quais acorrem multidões para ouvir,
cantar, dançar e se divertir.
Quem permitiu
que aquele bando de jovens em busca da felicidade efêmera de uma balada
arriscasse a vida em meio a fiações e equipamentos eletrônicos capazes
de gerar faíscas que se transformariam em labaredas no material
inflamável é um assassino serial em potencial e como tal deveria ser
tratado depois de contados os cadáveres carbonizados e os prejuízos
materiais.
Quantos dos jovens imolados
deixariam de ser incinerados se não tivessem sido barrados por agentes
de segurança empenhados apenas em garantir o pagamento das comandas de
consumo, em vez de permitirem a fuga de uma multidão empurrada para fora
do lugar pelas chamas?
Neste crime se
acumpliciam donos e empregados, brutos adoradores do bezerro de ouro,
que levam mais em conta a dívida do que a perda da vida. Nesta Pátria da
impunidade, madrasta malvada, quem acredita que alguém será punido?
Quem já o foi? Os rústicos proprietários dos barcos apinhados de
passageiros que naufragam no caudal da Bacia Amazônica ou nos fios de
água do Velho Chico? Quem pagou pela plateia queimada no circo de
Niterói, a maior tragédia de nossa história? Quem respondeu pelo
afundamento do Bateau Mouche na Baía da Guanabara ou pelos prédios que
desabam em reformas mal feitas no centro do Rio?
Uma
Justiça leniente acaba o serviço macabro que começa na cobiça, sua
colega em matéria de cegueira crônica. No meio do caminho entre o fogo
dos sinalizadores e a falta de uso do martelo do juiz figura a
incapacidade do Estado brasileiro - municípios, Estados e União - de
produzir leis adequadas para proteger o cidadão que trabalha, mora ou se
diverte e, sobretudo, de fazer com que as existentes, muito numerosas e
pouco eficazes, sejam cumpridas.
Os
decibéis dos equipamentos eletrônicos da balada da Kiss não perturbaram o
sono dos fiscais de Santa Maria, cujo gestor municipal fez vista grossa
à desobediência das próprias posturas pelo estabelecimento comercial do
qual nunca se omitiu de cobrar impostos. Municípios e o Estado do Rio
não gastam um centavo do que recebem da União para prevenir enchentes em
seu território, mas voltam a prometer a cada verão trágico novas
providências, que nunca serão tomadas nem deles cobradas nas eleições.
A
presidente Dilma Rousseff foi a Santa Maria e chorou com pena das
famílias que o Estado abandona ao desamparo. Assim como o imperador dom
Pedro II jurou que venderia o último diamante da Coroa para não deixar
um cearense morrer de fome. Fê-lo mais de cem anos antes de os
sertanejos continuarem perdendo tudo, até a própria vida, por causa da
sede implacável. As imagens das ruínas da obra inacabada da transposição
do Rio São Francisco sem que uma gota de água fosse levada à caatinga
mais próxima são a denúncia mais deslavada da hipocrisia generalizada de
gestores públicos que, desde o Império até hoje, garimpam votos
valiosos na miséria que os donos do poder semeiam em suas posses e
colhem na máquina pública que, eleitos pelos súditos, passam a pilotar.
Os
maganões da República mantêm-se no poder enganando os sobreviventes da
seca do semiárido, das enxurradas da Serra Fluminense e deste incêndio
em pagos gaúchos.
O Estado brasileiro - as
elites dirigentes que se apropriam do dinheiro público no poder em
municípios, Estados e na União - é cúmplice da cobiça assassina dos
empresários sem lei. Só nos resta rezar por suas vítimas e amaldiçoar os
algozes da cobiça cega e do Estado surdo. Já que terminarão impunes,
que lhes seja reservado o fogo eterno do inferno
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