Kátia Abreu, Senadora da República e Presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil - CNA. Publicado no Jornal A Gazeta, de 11/01/2013
Decisão
judicial não se discute. A Justiça determinou e os agricultores que ocupavam
a área da antiga fazenda Suiá Missu, em Mato Grosso, foram despejados. Saíram
sob a coerção de cassetetes e balas de borracha, em meio a bombas de efeito
moral que, lançadas por helicóptero, deram contornos de operação de guerra à
“desintrusão” promovida pela força- tarefa designada pelo Estado.
Todos
foram obrigados a vender seus bens a toque de caixa e a preços aviltantes
determinados pelo mercado de ocasião, sob pena de serem confiscados. Deixaram
para trás histórias de vida, escolas públicas, a igreja que frequentavam e
até alguns entes queridos, enterrados em um cemitério não índio, oficialmente
criado ali. Mas a violência maior só ganha alma na voz sofrida da agricultora
Rosilda Pimentel de Souza.
A casa
simples de madeira, erguida para abrigar a família, foi expropriada sem
direito à indenização. “Tem 20 anos que nóis mora aqui, e o que nóis vai
fazer? Morar embaixo da lona?”, pergunta a agricultora. O ar de espanto se
justifica diante da ação do próprio Estado, que havia levado vários
programas, como o Luz para Todos, ao povoado de Posto da Mata.
Confesso
que chorei quando assisti ao depoimento desesperado de Rosilda sobre a perda
do pedaço de chão em que criou os filhos. “Já derramei muito suor aqui. O que
eu tenho está aqui. Agora, esse mundo de gente só prometendo, mas no fim a
gente vai prá debaixo da lona, porque não tem outra terra e eu não tenho
outra casa. O que eu vou fazer? Ir pro corredor...só pode”.
No
linguajar simples do campo, a tradução de “corredor” é beira de estrada. E
quem quiser ver e ouvir Rosilda, basta uma pesquisa rápida no youtube. O
depoimento está lá. Quando fala da terra que julgava sua, ela relata que
pagou pelos 62 hectares. “Nóis não entrou, nóis não invadiu. Nóis comprou. E
aqui não tinha índio, não morava índio. Como é que agora tem? Não conheci
nenhum índio morando aqui.”
A
desocupação foi feita sem a devida proteção dos direitos humanos. A Justiça
bem que determinou que a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) enviasse
representante de suas comissões de direitos humanos para acompanhar a
operação. Mas a regional do Mato Grosso não encontrou nenhum profissional
disposto a cumprir a tarefa humanitária. Nem o apoio do Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (Incra) os pequenos agricultores tiveram.
O artigo
4º do Decreto nº 1.775, de 08 de janeiro de 1996, determina que o Incra dê
prioridade ao reassentamento de ocupantes de terras identificadas como
tradicionalmente indígenas. O plano de desintrusão até previa reassentar a
parcela de pequenos agricultores que tinha perfil de reforma agrária. Mas,
nos lotes, em Ribeirão Cascalheira (MT), não há infraestrutura alguma. Nem
água para matar a sede dos animais.
O Incra
ofereceu apenas barracos de lona para abrigar aquelas famílias de pequenos
produtores que, da noite para o dia, viraram sem-terra. Aos que não tinham
perfil de reforma agrária, nem o transporte prometido chegou. Uma “norma de
execução” do Incra diz que apenas “ocupantes não índios de boa fé”,
enquadrados nos critérios de reforma agrária, fazem jus a reassentamento.
Rosilda e sua boa fé ficaram fora do programa.
Nem por
isso a “desintrusão” de Suiá Missu foi ilegal. O mais honesto, no entanto,
seria falar em injustiça legalizada. Brasileiros sofridos do campo foram
expulsos da terra que julgavam ser deles por causa da fragilidade e da falta de
clareza da legislação que regula as terras indígenas.
A
desocupação acabou, mas o quadro de insegurança jurídica permanece. Quantas
“Suiá Missus” mais teremos que assistir, por deficiência da legislação
vigente? Nada contra a preservação ou criação de áreas indígenas. Tudo a
favor da segurança jurídica de um processo baseado em leis claras, de forma a
não alimentar a antropologia da vingança em que gente simples, como a
agricultora Rosilda, acaba no corredor e sem direito à indenização.
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