Jornalista Andrade Junior

domingo, 13 de janeiro de 2013

Injustiça legalizada

Kátia Abreu,  Senadora da República e Presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil - CNA. Publicado no Jornal A Gazeta, de 11/01/2013

Decisão judicial não se discute. A Justiça determinou e os agricultores que ocupavam a área da antiga fazenda Suiá Missu, em Mato Grosso, foram despejados. Saíram sob a coerção de cassetetes e balas de borracha, em meio a bombas de efeito moral que, lançadas por helicóptero, deram contornos de operação de guerra à “desintrusão” promovida pela força- tarefa designada pelo Estado. 

Todos foram obrigados a vender seus bens a toque de caixa e a preços aviltantes determinados pelo mercado de ocasião, sob pena de serem confiscados. Deixaram para trás histórias de vida, escolas públicas, a igreja que frequentavam e até alguns entes queridos, enterrados em um cemitério não índio, oficialmente criado ali. Mas a violência maior só ganha alma na voz sofrida da agricultora Rosilda Pimentel de Souza. 

A casa simples de madeira, erguida para abrigar a família, foi expropriada sem direito à indenização. “Tem 20 anos que nóis mora aqui, e o que nóis vai fazer? Morar embaixo da lona?”, pergunta a agricultora. O ar de espanto se justifica diante da ação do próprio Estado, que havia levado vários programas, como o Luz para Todos, ao povoado de Posto da Mata. 

Confesso que chorei quando assisti ao depoimento desesperado de Rosilda sobre a perda do pedaço de chão em que criou os filhos. “Já derramei muito suor aqui. O que eu tenho está aqui. Agora, esse mundo de gente só prometendo, mas no fim a gente vai prá debaixo da lona, porque não tem outra terra e eu não tenho outra casa. O que eu vou fazer? Ir pro corredor...só pode”. 

No linguajar simples do campo, a tradução de “corredor” é beira de estrada. E quem quiser ver e ouvir Rosilda, basta uma pesquisa rápida no youtube. O depoimento está lá. Quando fala da terra que julgava sua, ela relata que pagou pelos 62 hectares. “Nóis não entrou, nóis não invadiu. Nóis comprou. E aqui não tinha índio, não morava índio. Como é que agora tem? Não conheci nenhum índio morando aqui.”

 A desocupação foi feita sem a devida proteção dos direitos humanos. A Justiça bem que determinou que a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) enviasse representante de suas comissões de direitos humanos para acompanhar a operação. Mas a regional do Mato Grosso não encontrou nenhum profissional disposto a cumprir a tarefa humanitária. Nem o apoio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) os pequenos agricultores tiveram. 

O artigo 4º do Decreto nº 1.775, de 08 de janeiro de 1996, determina que o Incra dê prioridade ao reassentamento de ocupantes de terras identificadas como tradicionalmente indígenas. O plano de desintrusão até previa reassentar a parcela de pequenos agricultores que tinha perfil de reforma agrária. Mas, nos lotes, em Ribeirão Cascalheira (MT), não há infraestrutura alguma. Nem água para matar a sede dos animais. 

O Incra ofereceu apenas barracos de lona para abrigar aquelas famílias de pequenos produtores que, da noite para o dia, viraram sem-terra. Aos que não tinham perfil de reforma agrária, nem o transporte prometido chegou. Uma “norma de execução” do Incra diz que apenas “ocupantes não índios de boa fé”, enquadrados nos critérios de reforma agrária, fazem jus a reassentamento. Rosilda e sua boa fé ficaram fora do programa. 

Nem por isso a “desintrusão” de Suiá Missu foi ilegal. O mais honesto, no entanto, seria falar em injustiça legalizada. Brasileiros sofridos do campo foram expulsos da terra que julgavam ser deles por causa da fragilidade e da falta de clareza da legislação que regula as terras indígenas. 

A desocupação acabou, mas o quadro de insegurança jurídica permanece. Quantas “Suiá Missus” mais teremos que assistir, por deficiência da legislação vigente? Nada contra a preservação ou criação de áreas indígenas. Tudo a favor da segurança jurídica de um processo baseado em leis claras, de forma a não alimentar a antropologia da vingança em que gente simples, como a agricultora Rosilda, acaba no corredor e sem direito à indenização. 

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