Luiz Werneck Vianna: O Estado de São Paulo
Para um observador desavisado, inexperiente de como aqui se vivem as
coisas da política, diante do cenário que aí está, nada de estapafúrdio
que se lhe dê na telha a ideia de estarmos na iminência de uma
revolução.
Nas salas de aula das universidades os estudantes exibem adesivos
estampando um “fora Temer”, professores das escolas de ensino médio
cumprimentam seus alunos com o mesmo bordão, artistas e cantores
populares não começam seus espetáculos sem ele, também presente nas
salas de cinema e nos teatros. Uma ex-presidente da República que teve
seu mandato cassado, num trâmite que passou pela Câmara dos Deputados e
pelo Senado, que decretou o seu impeachment, em julgamento presidido
pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, participa de comícios
eleitorais de candidatos às eleições municipais, quando se declara
vítima de um golpe, todos são sinais que levam nosso observador a
ruminar suas impressões.
Contudo se ele resolver testá-las, levantando a vista para a sociedade
inteira, logo reconhecerá o despropósito da sua fabulação. No Congresso,
em suas duas Casas, o governo detém folgada maioria, couraça sem a qual
não há Executivo que se mantenha, fato ilustrado pela nossa
experiência, contundentemente confirmada por recentes episódios. Nas
chamadas classes fundamentais, fora a agitação de sempre que lhes é
própria, não se percebem outras movimentações que não sejam as da defesa
de seus interesses e direitos. No mundo agrário, tradicional calcanhar
de Aquiles da política brasileira, sopram os mesmos ventos.
Faltaria, ainda, consultar o que se passa nas eleições municipais,
termômetro confiável para o registro dos sentimentos da população, e nos
quartéis, cuja importância na tradição republicana brasileira dispensa
comentários. Nestes últimos reina, há tempos, a reverência ao culto
constitucional e ao exercício dos seus papéis profissionais; nas
eleições, que transcorrem em clima morno, se valem as pesquisas – e tudo
indica que valem –, as candidaturas que se deixaram embair pelo bordão
“fora Temer”, principalmente nas grandes capitais, estão longe de obter
votações que as levem à vitória. E, como sempre entre nós, não há melhor
detergente em horas de crise política do que um processo eleitoral.
Feito esse balanço, nosso observador admite que se equivocou no
diagnóstico. Mas se não é de revolução, do que se trata, que bicho é
esse que nos aturde com sua presença? A frase é velha, mas nem por isso
perde validade: o passado não mais ilumina o futuro, que ainda não
começou a nascer. A hora é de transição, de lusco-fusco, não é mais
noite e o dia tarda a aparecer, mas a sociedade se inquieta e começa
despertar sem saber o que a espera em meio às ruínas que sobraram dos
partidos e, em geral, das nossas instituições políticas.
Ela mudou em meio às poderosas transformações demográficas, sociais e
ocupacionais que desfiguraram a paisagem reinante em meados do século
passado. Encontramo-nos em terra nova, como se estrangeiros a ela,
agarrados a um passado que nos foi familiar, com as relações entre
gerações, entre gêneros, sobretudo entre as classes sociais e sistema de
crenças girando em gonzos fora do nosso controle e da nossa imediata
percepção. A sociedade modernizou-se por cima, sujeita a experimentos
saídos das pranchetas de uma tecnocracia ilustrada, impostos a ferro e
fogo – exemplo mais recente, o da colonização da Amazônia.
Entre nós, a obra dessa modernização persistiu por décadas, ora por vias
duramente repressivas, como no Estado Novo de Vargas e no regime
militar, ora de forma doce, como nos governos de Juscelino – que criou
no centro geográfico do Brasil, nos ermos do Cerrado, uma nova capital
para o País – e nos de Lula e Dilma.
Fora de dúvidas que tais esforços em favor da aceleração da modernização
foram bem-sucedidos, em que pesem os altos custos políticos e sociais
envolvidos, não só pelo aprofundamento das desigualdades já existentes,
como pela condenação da sociedade a um estatuto de minoridade sobre a
qual deveria incidir a ação modernizadora do Estado. Não à toa as lutas
pela democratização do País trouxeram consigo a denúncia dessa
modelagem, filha de nossa longa tradição de autoritarismo político, do
que foi exemplar a publicação de São Paulo 1975 – Crescimento e Pobreza,
sob a iniciativa do cardeal Paulo Evaristo Arns, obra coordenada por
Lucio Kovarick e Vinicius Caldeira Brant.
Essa nova agenda, nos anos 1980, encontrou no PT uma de suas mais
importantes vocalizações. Com efeito, dele vieram críticas contundentes
ao nacional-desenvolvimentismo e à cultura política que enlaçava a
sociedade civil ao Estado e às suas agências, como no caso do
sindicalismo, objeto de feroz crítica das emergentes lideranças
sindicais dos metalúrgicos do ABC, Lula à frente, como seu principal
porta-voz. O PT nasceu e cresceu em nome de uma representação da
sociedade civil que aspirava por autonomia diante da onipotência de um
Estado que fazia dela base passiva para sua manipulação.
Como se sabe, esse partido, por fas ou nefas, se converteu às práticas
que combatia; e levou-as à exaustão depois de um curto período de
fastígio no seu uso, culminando no episódio melancólico do impeachment
do mandato presidencial de Dilma Rousseff sob a acusação de ter atentado
contra a Lei de Responsabilidade Fiscal, cuja inspiração oculta, ao
impor limites ao decisionismo do Executivo, consistiu precisamente em
interditar caminhos ao processo de modernização autoritária vigente por
décadas no País.
Agora, não resta outra solução que não a de atravessar, pé ante pé, a
pinguela estreita que se tem à frente, de que falou em entrevista o
ex-presidente Fernando Henrique, travessia perigosa que, para ser
segura, está a exigir outra bibliografia e uma imaginação bem diversa da
que nos trouxe até aqui.
*Sociólogo, PUC-RJ
extraídaderota2014blogspot
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