por Mário Sérgio Conti Folha de São Paulo
No tempo em que os críticos falavam, o estudo da narrativa ocupava boa
parte do currículo das faculdades de letras. Criou-se até um termo,
narratologia, para investigar as relações entre uma história e os modos
de narrá-la. Era a década de 1970, tempo de glória do estruturalismo e
da ditadura.
Como muitos signos acadêmicos entraram e saíram de moda desde então,
hoje pouca gente lê "Discurso da Narrativa", de Gérard Genette. E
"narrativa" virou um recurso infantilizador que marqueteiros volta e
meia sacam do seu balaio de empulhações.
Bastam dois minutos de conversa e lá vem eles com a ladainha: é preciso
criar uma narrativa. Referem-se ao encadeamento de ações no passado, de
modo a justificar o que um político profissional faz ou deixa de fazer
no presente.
Narrativa, para eles, é uma historieta que legitima o percurso de um
político, por mais oportunista e cheia de reviravoltas que tenha sido a
sua trajetória.
Os profissionais do embuste criam narrativas para quem está no poder ou o
almeja. Numa reunião do PDT na semana passada, por exemplo, a
presidente comparou a situação atual com os idos de agosto de 1954.
Dilma se pôs implicitamente na pele de Getúlio Vargas, a seu ver vítima de uma tentativa de impeachment. A comparação, no entanto, não se coaduna com os fatos.
Porque, naquela ocasião, o irmão do presidente se corrompera. A oposição
udenista soltou os cachorros contra o presidente e buscou os quartéis. O
chefe da guarda pessoal de Vargas, Gregório Fortunato, tentou
assassinar o líder da UDN, Carlos Lacerda. A cúpula das Forças Armadas
se insubordinou.
Em termos de marketing, as incongruências são irrelevantes. O que vale é
a narrativa: os maus e seus paus-mandados conduziram o Pai dos Pobres,
tão bonzinho, ao suicídio. Acautelai-vos, pois, porque agora o ataque é à
mãe do PAC.
É uma narrativa tosca, mas poderosa. Haja vista que os que querem a
queda de Dilma evitam enaltecer o moralismo udenista, ainda que entre
eles abundem os aspirantes a Lacerda. Na narrativa tucana, e de outros
bípedes assemelhados, o petismo é odioso e perverso por natureza.
Outro teórico literário, Walter Benjamin (felizmente ainda lido),
classificaria Dilma de narradora arcaica, ligada ao mundo agrário de
antes da Primeira Guerra Mundial. Porque a presidente lança mão da
sabedoria oriunda dos ritmos da natureza -as estações do ano, plantar e
colher, nascer, morrer, recomeçar.
Na narrativa dela também não há história propriamente dita, superação. O
impeachment parece que voltou à baila porque o cosmos se move
ciclicamente. E como a história é uma estrutura na qual os fatos se
repetem, Dilma pode se apresentar como um mito, a Vargas rediviva.
Lula é narrador de outro quilate. Para continuar com figuras imaginadas
por Benjamin, o ex-presidente é o Marinheiro, o navegante que esteve em
outras terras, aprendeu coisas novas e voltou para narrar o que viu na
viagem. Ele saiu do sertão num pau-de-arara. Singrou mares e classes
nunca dantes navegados.
Deixou o Planalto como o presidente mais bem-sucedido da história nacional.
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