Jornalista Andrade Junior

domingo, 31 de janeiro de 2016

"Narrativas",

 por Mário Sérgio Conti Folha de São Paulo

No tempo em que os críticos falavam, o estudo da narrativa ocupava boa parte do currículo das faculdades de letras. Criou-se até um termo, narratologia, para investigar as relações entre uma história e os modos de narrá-la. Era a década de 1970, tempo de glória do estruturalismo e da ditadura.

Como muitos signos acadêmicos entraram e saíram de moda desde então, hoje pouca gente lê "Discurso da Narrativa", de Gérard Genette. E "narrativa" virou um recurso infantilizador que marqueteiros volta e meia sacam do seu balaio de empulhações.

Bastam dois minutos de conversa e lá vem eles com a ladainha: é preciso criar uma narrativa. Referem-se ao encadeamento de ações no passado, de modo a justificar o que um político profissional faz ou deixa de fazer no presente.

Narrativa, para eles, é uma historieta que legitima o percurso de um político, por mais oportunista e cheia de reviravoltas que tenha sido a sua trajetória.

Os profissionais do embuste criam narrativas para quem está no poder ou o almeja. Numa reunião do PDT na semana passada, por exemplo, a presidente comparou a situação atual com os idos de agosto de 1954.

Dilma se pôs implicitamente na pele de Getúlio Vargas, a seu ver vítima de uma tentativa de impeachment. A comparação, no entanto, não se coaduna com os fatos.

Porque, naquela ocasião, o irmão do presidente se corrompera. A oposição udenista soltou os cachorros contra o presidente e buscou os quartéis. O chefe da guarda pessoal de Vargas, Gregório Fortunato, tentou assassinar o líder da UDN, Carlos Lacerda. A cúpula das Forças Armadas se insubordinou.

Em termos de marketing, as incongruências são irrelevantes. O que vale é a narrativa: os maus e seus paus-mandados conduziram o Pai dos Pobres, tão bonzinho, ao suicídio. Acautelai-vos, pois, porque agora o ataque é à mãe do PAC.
É uma narrativa tosca, mas poderosa. Haja vista que os que querem a queda de Dilma evitam enaltecer o moralismo udenista, ainda que entre eles abundem os aspirantes a Lacerda. Na narrativa tucana, e de outros bípedes assemelhados, o petismo é odioso e perverso por natureza.

Outro teórico literário, Walter Benjamin (felizmente ainda lido), classificaria Dilma de narradora arcaica, ligada ao mundo agrário de antes da Primeira Guerra Mundial. Porque a presidente lança mão da sabedoria oriunda dos ritmos da natureza -as estações do ano, plantar e colher, nascer, morrer, recomeçar.

Na narrativa dela também não há história propriamente dita, superação. O impeachment parece que voltou à baila porque o cosmos se move ciclicamente. E como a história é uma estrutura na qual os fatos se repetem, Dilma pode se apresentar como um mito, a Vargas rediviva.

Lula é narrador de outro quilate. Para continuar com figuras imaginadas por Benjamin, o ex-presidente é o Marinheiro, o navegante que esteve em outras terras, aprendeu coisas novas e voltou para narrar o que viu na viagem. Ele saiu do sertão num pau-de-arara. Singrou mares e classes nunca dantes navegados.

Deixou o Planalto como o presidente mais bem-sucedido da história nacional.

Não mais, Musa, não mais. Acossado, o ex-presidente virou um narrador sem ponto de vista. Ora fala como um líder de truz dos trabalhadores. E ora se gaba de ter feito palestras milionárias a executivos amestrados. Tornou-se um narrador inconfiável, meio machadiano. Talvez por isso junte cada vez menos gente que queira ouvir a sua narrativa. 






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