Opinião J. R. Guzzo:
Publicado na edição impressa de VEJA
A fotografia que aparece foi tirada durante um encontro de estudantes em Brasília, em novembro do ano passado, e mostra a presidente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas, um desses grupos chapa-branca que se apresentam ao público como “movimento social”, pregando num megafone. A foto diz muito, ou talvez diga tudo, sobre a situação atual da luta de classes no Brasil. A moça bonita (aliás, se fosse feia, nenhum fotógrafo iria perder seu tempo com ela, não é mesmo?) que cavalga esse pobre-diabo é da classe dominante ─ basta olhar cinco segundos para a figura. O rapaz é da classe dominada ─ o “tipo brasileiro”, ou “moreno”, desses que se encontram aos milhões na fila do ônibus ou esperando a bondade de um atendimento na porta do hospital público. Estão na posição em que sempre estiveram neste nosso Brasil, e que treze anos de governo popular de esquerda comandado por Lula, Dilma e o PT não mudaram em um milímetro: ela montada, ele servindo de montaria. Seus mundos não se comunicam ─ depois da manifestação, esgotada a utilidade que o homem do povo teve para a garota da elite, ela retorna à sua classe, ele volta à sua periferia. Serve de cavalgadura ─ é essa a sua função, e apenas essa. O que mais poderia mostrar com tanta clareza quem está por cima e quem está por baixo? Ninguém planejou para que as coisas ficassem assim, claro. Mas foi assim que ficaram.
A líder estudantil tecnicamente é de esquerda; seu papel na luta de classes, segundo a boa teoria, seria servir aos deserdados da terra. Mas na prática o que ela faz é servir-se do deserdado da foto como o seu burro de carga. Olhe-se de novo para a cena: poderíamos estar diante de uma gravura de Rugendas, Debret ou Taunay, que retrataram com tanta exatidão o Brasil de 200 anos atrás, com os seus senhores e os seus escravos. Ninguém está dizendo aqui que o “movimento estudantil” é a favor da escravidão, ou coisa parecida, porque obviamente não é isso que acontece. Mas também não dá para fazer de conta que basta pegar um megafone e tirar carteirinha de membro dessa ou daquela organização “social”, “progressista” ou de “esquerda” para emigrar da elite e virar “povo”; não é assim que funciona. Como mostra a foto, certas coisas não mudam, salvo nas aparências. O resto é uma monumental conversa fiada.
“No primeiro dia nós falamos com a… a primeira coisa que nós fizemos foi falar, além de nos preparar no dia anterior, foi falar com a primeira-ministra da Noruega, que estava contribuindo para um fundo, para o nosso fundo de florestas, com 650 000 dólares, aliás, desculpa, com 650 milhões. Fiquei modesta. A Alemanha também tem uma contribuição para o fundo de 100 milhões de dólares ─ no caso da Alemanha é euros, não é? De euros.”
Nem é preciso dizer quem falou isso aí ─ ela mesma, claro, com o facho de escuridão que joga sobre quase tudo o que diz sempre que se dirige ao público sem ler uma folha de papel. No caso, o conjunto de sons transcrito acima foi emitido recentemente em Paris, durante uma dessas viagens espetacularmente inúteis que vive fazendo ao exterior. Mas tanto faz onde foi, ou quando, ou por quê. É a mesma coisa desde que entrou para o governo, especialmente depois que assumiu a Presidência ─ suas falas de improviso, nas quais vai empilhando frases sem pé nem cabeça e empulhando os ouvintes com informações incompreensíveis, num português que seria reprovado em qualquer prova de primeiro grau, tornaram-se a grande grife da sua passagem pelo comando da nação. A presidente Dilma Rousseff não ficará conhecida apenas por falar desse jeito, até porque governa ainda pior do que fala, mas jamais terá uma biografia séria que não registre com alarme a seguinte extravagância: entre os anos 2011 e 2018 (possivelmente) da era cristã o Brasil teve uma presidente da República incapaz de expressar-se no idioma oficial do país, segundo o artigo 13 da Constituição.
É possível que Dilma saiba expressar-se corretamente em português, mas não queira. É possível que queira, mas não saiba. É possível que queira e saiba, mas não consiga. O fato real é que não se expressa ─ e que o patoá utilizado por ela, tão volumoso que já rendeu até livro com a coleção das tiradas mais alucinantes, virou parte inseparável da cena brasileira de hoje. Alguém vai morrer por causa disso? É pouco provável. Mas dá para prever com razoável chance de acerto que os observadores do futuro, ao olharem para o Brasil dos nossos dias, façam a pergunta que se segue: por que os brasileiros de 2016 achavam normal aceitar na Presidência de seu país alguém que apresentava uma patente disfunção nos circuitos que ligam o cérebro às cordas vocais? É aí que o pensamento se transforma em palavra; se alguma coisa errada está acontecendo nessa engrenagem, parece claro que temos um problema, sobretudo quando a engrenagem em questão está na cabeça da presidente da República. Nossos descendentes também poderão estranhar que pouca gente, no Brasil de hoje, parecesse se importar com o cumprimento de uma regra clara: não dá para se expressar mal e pensar bem. Acharão particularmente curioso, enfim, que o mundo político discutisse com paixão o impeachment de Dilma sem jamais tocar na demência dos seus discursos de improviso. (Demência dos discursos, que fique bem claro; só dos discursos, certo?) Debatia-se a sua deposição, basicamente, por ter cometido fraude na contabilidade oficial, ou por ter mentido em excesso, ou ainda por outras razões, ao gosto de cada um. Mas e o sanatório geral de onde saem as coisas que fala ─ tudo bem aí? É complicado. Não está previsto na lei, como se sabe, impeachment de presidente por tratar a população como uma manada de idiotas, para a qual se pode dizer qualquer tipo de disparate. Uma futura Constituição talvez devesse pensar nisso.
Qual seria a reação do ex-presidente Lula, do PT e da esquerda nacional se em janeiro de 2003 alguém dissesse que treze anos depois, e já em seu quarto governo seguido, hospitais e prontos-socorros do Rio de Janeiro fechariam suas portas com tapumes de madeira para impedir a entrada da população? Foram cenas de país africano em tempo de calamidade: às vésperas do Natal, gente desesperada implorando por atendimento de urgência, macas amontoadas em corredores, cirurgias canceladas, médicos e enfermeiros sem remédios, ataduras, luvas, soro, material cirúrgico, anestesia, roupa de cama e, ainda por cima, sem salários. Nem o inimigo mais desesperado do “governo popular” que então fazia sua estreia seria capaz de imaginar um desastre desses na segunda maior cidade do Brasil. E se alguém tivesse imaginado seria logo acusado de sabotador, golpista, fascista, inimigo do povo, inconformado em ver um operário chegar pela primeira vez à Presidência da República neste país, etc. etc. Mas aí está: é exatamente o que acabamos de ver no mundo dos fatos.
Treze anos depois, é nisso que vieram dar as “políticas de saúde pública” de Lula, de Dilma Rousseff e do PT. Segundo já confessaram as próprias autoridades da área, a saúde brasileira está simplesmente em colapso ─ e não só no Rio de Janeiro, que vai organizar, daqui a seis meses, nada menos que uma Olimpíada. Há hospitais federais parcialmente paralisados em São Paulo e outras capitais. O governo vem fracassando, ano após ano, no controle de epidemias da pobreza; em vez de sair, o Brasil se afunda cada vez mais no Terceiro Mundo em matéria de saúde pública. Com todo o tempo que já teve para resolver o problema, não apenas não resolveu nada; também não tem competência, nem energia, para lidar com desgraças novas. Ainda agora, o país se vê diante de um crescente surto de microcefalia, doença típica da miséria e da inépcia dos serviços sanitários. Em suma: o “Estado Forte”, que tanto encanta a presidente e a esquerda brasileira, não tem esparadrapo para um curativo. É óbvio que alguma coisa, ou tudo, deu profundamente errado aí.
Para adicionar insulto à injúria, o governo acha que não tem culpa de nada. No primeiro grande mistério de 2016, diz que a culpada “é a oposição”, que há treze anos não manda sequer numa bica de água no mundo federal. Pior: diz que está sem dinheiro e, sinistramente, alega que a população tem de “escolher” entre pagar mais impostos ou ficar sem assistência médica ─ e, já que estamos no assunto, também sem escola, sem serviços, sem obras, sem emprego. A população brasileira não tem de “escolher” nada. Já pagou, na forma de impostos que lhe consomem 40% de tudo o que ganha, o atendimento hospitalar mais todas as obras que não foram feitas e todos os serviços que não foram prestados. Vai ter de pagar de novo? Dinheiro, como os demais corpos da natureza, não some ─ apenas muda de lugar. No caso, mudou de onde deveria estar para o bolso de empreiteiras de obras, “prestadoras de serviço”, estrelas da Operação Lava Jato, vendedores de “sondas”, empresários-companheiros e outros tantos amigos dos amigos. O que sobrou foi jogado fora pela incompetência.
Eis aí o Brasil das realidades.
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