por Denis Lerrer Rosenfield O Globo
A perversão da democracia começa pelo (mau) uso da linguagem política.
Conceitos são esvaziados do seu significado, palavras são
ideologicamente utilizadas, e os discursos afastam-se de qualquer
relação com a verdade. Pior do que isto, ritos e procedimentos
democráticos são de tal forma deturpados, que terminam por servir à
própria subversão da democracia.
O caso mais extremo, tão admirado por certos setores da esquerda
brasileira, é o da Venezuela, com seu “experimento” de “socialismo do
século XXI”. Na verdade, trata-se de uma mera repetição do comunismo do
século XX, tendo como único elemento diferenciador o fato de se dizer
democrático quando, na verdade, não respeita regras democráticas ou,
melhor ditas, republicanas.
O Judiciário é totalmente dominado, até recentemente o Legislativo era
completamente controlado, os meios de comunicação são severamente
reprimidos e cooptados por empresários laranjas do governo, a Petrobras
deles é usada para objetivos nitidamente políticos, milícias aterrorizam
a população e assim por diante.
Na fachada, a “democracia” lá seguiria vigorando, pelo menos no dizer do
atual governo brasileiro, que tem uma relação de cumplicidade com os
bolivarianos. A ideologia tomou completamente o lugar da diplomacia.
Note-se que o Itamaraty seguiu fielmente as orientações do PT, que se
tornou cúmplice da subversão da democracia naquele pobre país.
Curiosamente, tal política é dita defensora da “democracia”.
Em certo sentido, dá para entender. O cerne da questão reside no que
eles entendem por democracia. A verdade, certamente, não é a sua
preocupação. Bons exemplos têm aparecido nos últimos dias e semanas.
Todos eles mostram processos de perversão da democracia, como se a
corrupção partidária patrocinada pelo PT e partidos aliados sobre o
Estado brasileiro encontrasse aqui uma sustentação.
Mais do que isto, tal forma de utilização da linguagem política poderia
prenunciar um processo de subversão mesma da democracia. Não estamos
evidentemente lá, mas há graus de uma evolução que devem ser seguidos
atentamente, quando mais não seja na defesa mesma da democracia.
O ex-presidente Lula e o presidente do PT saíram em uníssono na defesa
do manifesto dos advogados, comprometidos em boa parte com os envolvidos
na corrupção do Estado. São os ricos “companheiros” que se aliaram
neste assalto ao patrimônio público. Que advogados defendam os seus
clientes, nada mais normal. Agora, que o façam dizendo defender o
“estado democrático de direito” é simplesmente hilário. Nenhuma pessoa
de bom senso poderia compartilhar tal disparate.
Acontece que parte destes advogados não consegue entregar aos seus
clientes o que tinha prometido, a saber, a impunidade. Assim era no
passado. Acostumaram-se tanto com esta situação, enriqueceram com isto,
que chegaram a considerar que a exceção era a regra, ou seja, a
impunidade seria a regra mesma de uma sociedade democrática.
Estão, portanto, perplexos diante de uma nova situação, em que
instituições republicanas como o Judiciário, o Ministério Público e a
Polícia Federal estão cumprindo rigorosamente com suas funções
institucionais. Tornam-se, agora, alvos, como se a responsabilização dos
criminosos, empresários, agentes, executivos ou políticos, não devesse
ser a regra. A perversão é total. Os defensores do estado de direito
tornam-se, nesta visão deturpada, os algozes da democracia.
Na verdade, o ex-presidente Lula e o presidente Rui Falcão parecem estar
advogando em causa própria. Não faltou nem mesmo a defesa dos seus
dirigentes presos e processados.
Até hoje os condenados pelo mensalão são considerados “guerreiros do
povo” brasileiro e defendidos enquanto tais. Há maior desrespeito ao
“estado democrático de direito”, neste claro desprezo ao Supremo
Tribunal Federal e ao seu longo processo de julgamento do mensalão?
Ambos chegaram a afirmar que o Brasil viveria em um “estado de exceção”,
que substituiria o “estado democrático de direito”. O presidente do PT
chegou a dizer que o processo atual corresponderia ao pior período do
regime militar, em que não vigorava o habeas corpus.
Qual é a noção de regra que orienta tais declarações? Tudo sinaliza para a defesa do status quo de aparelhamento petista do Estado brasileiro, com a privatização partidária da própria Petrobras, hoje uma ruína de si mesma.
Para eles, valeria a exceção, a ausência de regras democráticas, pois,
no entender deles, só o feito por eles, nos malfeitos que os
caracterizam, poderia ser considerado democrático. Identificam, na
melhor tradição comunista, o partido com o Estado.
Do mesmo tipo é o discurso governamental e petista de que o processo de
impeachment seria um “golpe” contra a democracia. Desconsideram a
própria Constituição, da qual este instituto faz parte. Pior ainda, o
Supremo ainda recentemente afirmou a sua plena validade, embora tenha
alterado alguns dos seus ritos.
Ora, tratar do impeachment como golpe nada mais é do que um desrespeito
ao “estado democrático de direito”. Aliás, no passado, o PT defendeu
este instituto no impeachment do ex-presidente Collor e advogou, mesmo,
pelo impeachment do ex-presidente Fernando Henrique. Lá valia, agora
não!
Embora o Fórum Social Mundial, que está ocorrendo em Porto Alegre, tenha
perdido o seu glamour de antanho, ele não deixa de ser um termômetro do
que pensa o PT e os movimentos sociais que orbitam em seu entorno. Ora,
a marcha inaugural e os discursos de representantes do governo
caracterizaram-se pela “denúncia do golpe”. Note-se a sincronia entre
essas declarações, as declarações de Lula, o manifesto dos advogados e o
pronunciamento do presidente do PT. A sua menor preocupação é a defesa
do “estado democrático do direito”. Estão, na verdade, pregando a
“exceção”, a eliminação das regras republicanas!
extraídaderota2014blogspot
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