por Hélio Schwartsman Folha de São Paulo
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso sugeriu à atual mandatária,
Dilma Rousseff, que, num "gesto de grandeza", renunciasse ao cargo
máximo. Ao falar em grandeza, FHC parece insinuar que, embora a perda do
posto implique ônus pessoais, poderia fazer bem à biografia da petista.
Estamos lidando aqui com uma rica distinção psicológica entre dois eus,
cujos interesses nem sempre estão alinhados. O primeiro, que podemos
chamar de eu material, é o que vive as experiências e tem de passar
pelas sensações positivas e negativas a elas associadas. O outro é o eu
autobiográfico, que opera com metas de vida e se vale de narrativas para
tentar dar-lhes um sentido.
Como somos uma espécie literária, valorizamos mais os aspectos autobiográficos.
São eles que permitem construir narrativas moralizantes, que são muito
úteis para a sociedade. Penso em coisas do tipo, "Deus irá julgar seus
atos" ou, num registro mais próximo a FHC, a ideia, atribuída a Sólon,
de que, diante das reviravoltas da vida, não podemos afirmar que uma
pessoa foi feliz até que ela tenha morrido.
Não digo que não haja sabedoria aí, mas receio que a questão não seja tão simples.
A menos que acreditemos que teremos de prestar contas a um Papai do Céu,
não é fácil relegar o eu material, que, afinal de contas é o eu do dia a
dia, a uma posição tão secundária. O psicólogo Dan Gilbert é que faz a
pergunta fatal: será que dá para levar a sério os argumentos filosóficos
que tentam nos convencer de que o criminoso nazista que termina seus
dias numa bela praia na Argentina foi de fato menos feliz do que o pio
missionário que é devorado vivo por canibais na África?
Aquilo que vivemos a cada instante importa, talvez mais do que o
desejável. Não é coincidência que emoções da esfera do eu material, como
preguiça, raiva, ambição, frequentemente sabotem nossas mais elevadas
intenções autobiográficas.
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