por Demétrio Magnoli O GLOBO
Os comunistas, primeiro, e os nazistas, em seguida, descobriram que a verdade objetiva é uma película fina, vulnerável aos golpes de uma propaganda sistemática
‘A revolução dos bichos’, publicado em agosto de 1945, faz 70 anos.
Minha filha leu-o, avidamente, aos 11. No fim, anunciou o desejo de ler a
“parte 2” — e ficou decepcionada quando informei-lhe que isso não
existe. George Orwell não era um propagandista: no encerramento de sua
alegoria, os porcos (os bolcheviques) já não se distinguem dos humanos
(os capitalistas). A continuação que minha filha queria apareceu, porém,
numa falsificação da CIA. O agente Howard Hunt comprou secretamente os
direitos de adaptação cinematográfica e produziu uma versão em desenho
animado. Nela, a trama ganha outro desfecho: os animais tomam de assalto
a casa da fazenda ocupada pelos porcos e, com essa segunda revolução,
libertam-se finalmente. Propaganda e verdade — os dois termos acompanham
a trajetória de Orwell, conferindo-lhe atualidade.
Orwell aprendeu menos com os livros que com a vida. “Dias na Birmânia”,
publicado em 1934, é uma narrativa de descoberta do imperialismo. Mas,
para o jovem policial numa província da Índia Britânica, imperialismo
significava algo mais decisivo que um conceito político e econômico. A
sua revolta pessoal dirigia-se contra a “sujeira do Império”: os hábitos
dos colonizadores. Naqueles “dias”, um tempo empapado pela ideia de
raça, Orwell tatuou, entre os nós dos dedos, símbolos usados pelos
birmaneses.
A jornada de libertação prosseguiu no East End londrino e na Rue du Pot
de Fer, em Paris, depois da conversão do policial em escritor. “Na pior
em Paris e Londres”, de 1933, que retoma o fio tecido por Jack London
meio século antes, é o resultado de sua experiência nos pardieiros,
entre os miseráveis. Nele, Orwell registra a presença de chineses,
lascares de Bengala, dravidianos do Ceilão e sikhs do Punjab. Uma
passagem menciona a beleza das mulheres e especula que seria fruto da
“mistura de sangue”. Ele procurava a verdade, uma humanidade
compartilhada, e jogava fora a armadura da “pureza racial”.
O “ato de um idiota” — assim, num restaurante de Paris, Henry Miller
crismou a decisão de Orwell, seu companheiro de mesa, que já estava a
caminho, de engajar-se ao lado dos republicanos espanhóis
antifranquistas. Miller era um cínico incorrigível; Orwell, um moralista
e um asceta. Lutando na Espanha, de 1938, conta uma história
clandestina, proibida, enterrada sob os espessos sedimentos de
propaganda do comunismo oficial, que ganharia novos e pungentes detalhes
no “Memórias de um revolucionário”, de Victor Serge, publicado apenas
em 1951. Operando sob ordens de Moscou, o Partido Comunista Espanhol
(PCE) preferia combater os anarquistas e trotskistas reunidos no Partido
Operário de Unificação Marxista (POUM) a fazer a guerra contra as
forças franquistas.
“Aquela foi a primeira vez que eu vi uma pessoa cuja profissão era
contar mentiras — a não ser que você inclua os jornalistas”, escreveu
sobre um gordo agente soviético baseado em Barcelona que se dedicava a
difamar os militantes do POUM, classificando-os como espiões. Orwell
temia, mais que tudo, o “evanescimento” do conceito de verdade objetiva
no mundo, destroçado pelas campanhas de propaganda partidária. Desse
temor, nasceram “A revolução dos bichos” e “1984”, obras cujo foco não é
tanto a política, mas a linguagem política e sua degeneração.
Os porcos estão vivos — e entre nós. Os comunistas, primeiro, e os
nazistas, em seguida, descobriram que a verdade objetiva é uma película
fina, vulnerável aos golpes de uma propaganda sistemática organizada em
torno de vetores abstratos, mas de fácil compreensão. “Trabalhadores”
versus “exploradores”, “alemães” versus “judeus”, “nacional” versus
“estrangeiro”, “Povo” versus “Elite”, “Nós” contra “Eles”: a partição de
uma realidade complexa em polos antagônicos bem simples é capaz de
produzir o milagre da substituição do fato pela versão. A lição da
propaganda partidária do totalitarismo difundiu-se no mercado da
política, inspirando a gramática e as fórmulas utilizadas no marketing
eleitoral.
“É tudo culpa de FHC”: ao mentiroso, as batatas.
A difamação de Orwell ganhou tração no pós-guerra, logo após sua morte,
por iniciativa do Grupo de Historiadores do Partido Comunista Britânico,
que contava com figuras como Maurice Dobb, Cristopher Hill, Eric
Hobsbawm e Edward P. Thompson. Eles não o perdoavam pela sua crítica
implacável aos intelectuais de esquerda que, colocando um sinal de igual
entre democracia e fascismo, tinham oferecido suporte ao Pacto
Germano-Soviético de 1939.
A operação difamatória funcionava menos como vingança e mais como uma
queima de arquivo. Nas vésperas da guerra, os intelectuais comunistas
britânicos distribuíram panfletos celebrando a aliança entre Stalin e
Hitler. Crismar Orwell com a marca do traidor era um expediente
destinado a incinerar os textos perigosos, lavando as reputações dos
“amigos do povo”. Thompson, em especial, consagrou-se à missão
purificadora.
Aproveitando-se da circunstância de que um homem morto não pode
retrucar, recorreu simplesmente à mentira, acusando-o de ser
“obsessivamente” sensível à “menor insinceridade” da esquerda, mas surdo
e cego à “desumanidade da direita”. A ideia era relegar o alvo ao
esquecimento, o exílio mais pesado para um escritor.
No fim, Orwell triunfou. É bem certo que os porcos ainda estão entre nós
— continuam a se confundir com os humanos e, inclusive, se
multiplicaram. Entretanto, a condenação ao exílio não funcionou. “A
revolução dos bichos”, recusada por diversos editores britânicos e
americanos que se curvavam aos interditos da esquerda oficial,
converteu-se numa das obras definidoras do século XX. É uma obra
especial, capaz de encantar uma criança de 11 anos que nunca ouvira
falar da Revolução Russa, de Stalin, dos Processos de Moscou, da Guerra
Civil Espanhola e de toda essa pilha de cadáveres insepultos nos campos
de guerra das utopias ideológicas.
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