Jornalista Andrade Junior

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Meu pai profetizava que a farsa cairia de repente e de uma vez

 Valentina de Botas:

Xampum, creme rinse. Xampu não tem m no final e ninguém fala creme rinse, pai, é condicionador. Obrigado, dizia cordialmente desinteressado, vou me lembrar. Que nada! Seria sempre assim. Quando tomava chuva e voltava com frio, minha mãe não dizia palavra. Antes avisara que levasse um guarda-chuva, homem, que vai chover, e um casaco que vai esfriar mais e essa tua bronquite é danada.

Sabia disso, mas, quê diacho!, ele não era criança, então, saía sem guarda-chuva e casaco. 50 anos viveram assim. Na volta, nem precisava ver os olhos da cabocla para adivinhar a censura silenciosa. O armistício era na cozinha intermediado pelo cheiro pacificador do café feito inda agorinha. Sentavam-se à mesa, falavam de tudo, menos do guarda-chuva e do casaco, até riam.
É o jeito do teu pai ser livre; de primeiro, achei que a bronquite ia matar ele, depois vi que era disso que ele ia morrer não, mas se eu deixar de falar que ele pegue o guarda-chuva e o casaco e, aí, Deus Nosso Senhor usa essa bronquite pra levar ele nesse dia, só vou lembrar que foi porque não falei do guarda-chuva e do casaco; é lembrança pouca demais pra tantos 50 anos. Minha mãe doce me explicou.
As fatias diárias da nossa convivência surgiram monolíticas no trajeto até o hospital enquanto todos aqueles outdoors me viam passar pela marginal Pinheiros naquela manhã desnecessariamente azul de 7 de janeiro de 2013 de um azul que azulejava tudo em volta. O que fazer com a beleza daquele dia? Beleza sem lugar, fora de hora. Um autoengano me dava a certeza de que o pior já tinha passado: depois do telefonema pouco antes das 6 da manhã chamando a família ao hospital e da notícia da morte.
Escalada para receber o corpo, segui o funcionário que abria umas portas até uma sala fria. Me intriga se era um ventilador, alguma janela aberta ou só o vendaval indiferente do que a gente passa e do que passa pela gente que fazia o cabelo prata e liso voar para fora do lençol. É meu pai amado, amado, amado, falei na lucidez levada às últimas consequências para admitir que nada é pior do que forçar a razão ao que o coração já sabe.
Só talvez agora é que sei – de um saber provisório como só o saber sabe ser – que o pior nunca passa: a ausência. Encontrei nesta tarde, entre uns papéis por organizar, a lista de compras que meu pai escrevia quando teve o derrame que o matou. O homem direto, claro e simples não deturpava o sentido das coisas como no asqueroso mundo petista; meu pai repudiava essa coisa com tudo dentro. Profetizava que a farsa cairia de repente e, tão imensa, cairia de uma vez.
Releio a lista, penso na dádiva que seria ter só um dia com ele, mostrar-lhe a profecia que se cumpre e aproveitar para me desculpar por erros evitáveis. Me lembro que estou sem condicionador, quando terminar este comentário vou prender um lembrete na geladeira: comprar creme rinse. Um beijo eterno, pai; um beijo, pais.









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