por Demétrio Magnoli FOLHA DE SÃO PAULO
Sergio Moro transfigurou-se, domingo passado, em ícone político. Nome e
rosto estampados em meio às multidões, ele ocupou o lugar que, até há
pouco, pertencia a Joaquim Barbosa. Repetindo as injúrias desfechadas
contra o ex-presidente do STF, os "jornalistas" palacianos acusam-no de
conduzir uma campanha de perseguição política. De fato, o juiz de
Curitiba fundamenta seus atos em sólidos argumentos legais, que têm
encontrado amparo nas instâncias jurídicas superiores. Contudo, ao mesmo
tempo, suas manifestações, bem como as dos procuradores e delegados da
força-tarefa da Lava Jato, estão permeadas pelo timing e pela gramática
da linguagem política. Existe um Moro político, cujos contornos devem
ser buscados na tensão dilacerante entre o ideal da república
democrática e a realidade da "república dos companheiros".
Segundo o ideal da república democrática, a esfera pública desdobra-se
nos domínios da política e da administração. Os partidos operam no
primeiro, formulando plataformas de governo e produzindo legislação. O
segundo, em contraste, pertence a uma burocracia profissional,
meritocrática e não-partidária, que conduz a máquina pública conforme
regras legais. À luz desse ideal, a corrupção política é uma aberração
escandalosa, decorrente de uma brecha na cerca que demarca os dois
domínios.
O Brasil nunca chegou perto da utopia da república democrática. O
lulopetismo, porém, sem desvencilhar-se da herança nacional
patrimonialista, elevou a corrupção a um novo patamar. A mudança não é
(apenas) de zeros à direita, mas de paradigma. Da tradição comunista, o
PT nada conserva a não ser o desprezo à república "burguesa", isto é, ao
conceito de separação entre política e administração. O Moro político
nasce da indignação social contra a ocupação partidária da máquina
estatal.
Na "era do lulopetismo", amarraram-se os antigos fios do patrimonialismo
com os nós da politização da administração pública. A propaganda
oficial do governo e das empresas estatais difunde mensagens
ideológicas. Por meio de financiamentos subsidiados, o BNDES teceu
alianças entre o PT e o alto empresariado enquanto, no campo externo,
amparava os regimes dos "companheiros" castristas e bolivarianos.
Ministérios foram cedidos, "de porteira fechada", a partidos da base
governista. Inventaram-se secretarias especiais que funcionam como
pátios de folguedos de movimentos sociais. As diretorias das estatais
foram loteadas entre operadores do PT e de partidos aliados, semeando-se
o terreno onde brotou a árvore do "petrolão". A aversão a esse estado
de coisas manifesta-se pela celebração do juiz de Curitiba.
Há mais que isso, entretanto. A marcha batida da ocupação partidária do
Estado representa, potencialmente, uma ameaça à autonomia do Judiciário,
do Ministério Público e da Polícia Federal. A Lava Jato é, além de uma
operação anticorrupção, um levante de instituições estatais decididas a
preservar suas próprias prerrogativas constitucionais. Por isso, todos
os seus atores têm plena consciência de que estão inscritos numa arena
política e midiática. Moro não fala apenas nos autos, mas emite
mensagens políticas nas suas ordens de prisão preventiva. Os
procuradores descrevem, pedagogicamente, a estrutura das redes de
corrupção que associam empresários e operadores partidários. Os
delegados fabricam signos políticos quando escolhem os nomes das fases
da Lava Jato.
Ao impugnar a politização da administração pública, a insurgência da
Lava Jato desafia a estabilidade do Brasil oficial. Moro faz política
porque evoca, num país empapado de cinismo, a utopia da república
democrática. Há motivos para que seja celebrado nas ruas. Contudo, no
fim das contas, a ruptura que simboliza só pode ser concluída pela ação
de representantes eleitos pelo povo. Um juiz ajuda, mas não salva.
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