por Luiz Sérgio Henriques
O Estado de São Paulo
Praticamente desde o começo do ciclo petista, de modo intermitente e nem
sempre por motivos razoáveis, pois, afinal, o poder está em jogo em
eleições regulares, tem vindo à tona o fantasma de possíveis
dificuldades para o cumprimento de um requisito mínimo da política
democrática, a saber, a alternância no poder. Não propriamente que algum
dirigente do partido dominante brandisse armas do arcaico arsenal da
velha esquerda revolucionarista - não reformista! -, como a "ditadura do
proletariado" ou as "democracias populares", as quais, uma vez
instaladas, exigiriam a ruptura definitiva com o passado das respectivas
sociedades e instaurariam uma realidade radicalmente nova - um modo de
produção dito socialista - que não permitisse recuo ou reversão, a não
ser pela via catastrófica da contrarrevolução e da guerra civil.
Evidentemente, nenhuma estratégia desse tipo era, ou é, possível na
circunstância brasileira, e, ainda que o fosse, por certo não seria nem
remotamente desejável. Mesmo assim, aqui e ali surgiram alusões a uma
hipótese de "mexicanização", entendendo-se por isso o prolongado domínio
de um partido da "revolução institucional", cujos movimentos de
enquadramento oficialista da sociedade, decapitação de forças
conservadoras e ocupação muitas vezes destruidora das instituições o
deixassem praticamente sozinho em cena aberta, sem adversários capazes
de propor o rodízio no poder, com aliados em posição subalterna e o
sistema de freios e contrapesos abalado.
O partido dominante - afirmou-se em diferentes ocasiões - tinha menos um
projeto de governo do que um projeto de poder; menos um programa de
reformas sociais, num sentido simultâneo de mais liberdade e mais
igualdade, do que a ideia de se manter por tempo indefinido à frente do
Estado, valendo-se de maciços recursos do poder para "fazer amigos" e
reduzir inimigos a sparrings de conveniência, marcados para perder.
De fato, uma parte desse diagnóstico pôde buscar amparo em elementos da
ideologia e da ação prática do petismo, ainda alimentados pela
incompletude, nesse partido, da mudança imposta pela realidade às
esquerdas de todo o mundo em fins do século passado: na formulação de
Norbert Lechner, a transição do paradigma revolucionário, tão em voga
nos anos 1960, para o democrático, que traz em si, essencialmente, a
exigência de compatibilizar hegemonia e pluralismo, programação
econômica e mercado, ativismo estatal esclarecido e respeito às
múltiplas dimensões e a atores da sociedade civil e da sociedade
política.
Outra parte do diagnóstico, porém, provém de uma segunda ordem de
problemas. A anomalia "mexicana" contou, para se estabelecer e
consolidar, com a fraqueza de outras forças da esquerda moderada, e
mesmo da centro-esquerda, que, não compreendendo a natureza do desafio
apresentado pelo principal esteio daquela anomalia, se deixaram conduzir
de modo mais ou menos inerme à posição de adversários convencionais,
batidos em eleições nas quais se apresentaram internamente conflagrados e
destituídos de laços "orgânicos" com uma sociedade que se modificava
aceleradamente, com alterações vistosas no mercado de trabalho, nos
padrões de consumo, nas expectativas sobre o setor público como provedor
de serviços essenciais.
Definitivamente, partidos de notáveis, com vida interna restrita às
ocasiões eleitorais, não são páreo para um partido de massas
(originalmente de massas), com vocação para se apossar das estruturas de
poder e, ainda por cima, como ficou demonstrado no minucioso julgamento
da Ação Penal 470, lançado ao jogo bruto da desestruturação do sistema
partidário e da desfiguração do órgão central da democracia
representativa. Atributos, deve-se repetir, não inerentes à esquerda
tout court, mas à sua parte ainda hostil à centralidade da democracia
como o trâmite irrecorrível de qualquer projeto de mudança social que se
queira legítimo.
O bloco à moda "mexicana" não se instalou só por causa da fraqueza de
seus rivais da esquerda democrática ou da capacidade de cooptar, com
método, a parte conservadora. Teve a seu dispor, por um bom período da
primeira década do século, condições excepcionais para sua vigência e
reprodução, com os recursos advindos da demanda de commodities e a
correlata emergência da China, este fato espantoso, com a força dos
deslocamentos tectônicos, que ainda mal conseguimos conceituar. Teve,
assim, recursos para pôr em prática mecanismos clássicos de consenso
passivo, como o populismo cambial ou o sistema de bolsas, considerado
menos como direito da cidadania do que como dádiva do governante, ele
mesmo entendido como "encarnação física da identidade metafísica da
nação", para mencionar outra expressão de Lechner.
Nem o desaparecimento dessas condições favoráveis nem processos
judiciais, como o da Ação Penal 470 ou o que parece avizinhar-se em
torno da Petrobrás, têm por si sós o atributo de abrir o caminho da
alternativa. Podem favorecer, como favoreceram, trincas no bloco antes
aparentemente homogêneo, como a passagem para a área oposicionista de
Marina Silva e Eduardo Campos. Podem vitaminar a oposição tradicional,
se não neste, certamente em futuros embates. Podem dar fôlego a forças
governistas de centro que se colocam como garantidoras das liberdades,
como o PMDB histórico ou o que dele tiver restado. Mas, como está à
vista de todos, não dispensam a condução sábia de diferenças e
divergências entre atores e forças das oposições democráticas.
A ativação destas forças, se souberem superar o estágio grosseiramente
chamado de "antropofagia de anões", será vital para a ocupação de um
lugar desgraçadamente vazio na política brasileira - o de uma esquerda
democrática. Será bom para a esquerda, melhor ainda para a democracia.
*Luiz Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta. É um dos organizadores das 'Obras' de Gramsci no Brasil.
fonte rota2014
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