Bolívar Lamounier:O Estado de São Paulo
Num profícuo seminário sobre o sistema de governo promovido duas semanas
atrás pela Federação do Comércio de São Paulo, o ex-senador Bernardo
Cabral fez candente defesa da Constituição de 1988. Argumentou – a meu
ver, com razão – que ela tem mais qualidades que defeitos, e tem
normatizado razoavelmente bem a vida brasileira. Frisou, para
exemplificar, as generosas estipulações do artigo 5.º sobre direitos
individuais e coletivos e as referentes ao meio ambiente nos artigos 24 e
225, área em que foi pioneira.
O problema – do qual o ex-senador tem evidentemente plena consciência – é
que Constituições não se autoaplicam. Uma coisa é o texto, outra, que
pode ser muito diferente, são a reverência e a lealdade prática que o
país e principalmente as autoridades constituídas lhe devotam. Durante
muito tempo, como bem sabemos, o Brasil conseguiu avançar na construção
da democracia, apesar do exíguo número de democratas sinceros que
ocuparam as mais altas magistraturas. Nesse aspecto, tudo faz crer que
atingimos um ponto irreversível, mas somos ainda, salvo melhor juízo, um
país um tanto lerdo quando se trata de exigir o estrito cumprimento da
Carta vigente.
O pano de fundo da preocupação que venho de externar se compõe
principalmente dos fatos ocorridos na sessão final do impeachment de
Dilma Rousseff, realizada no dia 31 de agosto. Naquela ocasião, ao vivo e
em cores, entre impotente e estupefato, a Nação assistiu à fria
execução de uma manobra destinada a desfigurar o artigo 52, parágrafo
único, da Constituição, com o objetivo adrede cogitado de livrar a
presidente afastada da inabilitação, por oito anos, do exercício de
qualquer função pública.
Urdida, como é de conhecimento geral, pelo presidente do Senado, sr.
Renan Calheiros, a trama foi levada a cabo com a anuência e ativa
participação do ministro Ricardo Lewandowski, então presidente do
Supremo Tribunal Federal (STF), que por essa razão presidia a sessão do
Senado. Se viva fosse, até Madre Teresa de Calcutá perceberia o caráter
malicioso do plano a que as duas citadas autoridades recorreram para
descumprir o mandamento cristalinamente expresso no texto
constitucional. Rezo para que a ministra Cármen Lúcia, agora presidente
do egrégio tribunal, que seguramente conserva o essencial daquela
teimosia cívica característica dos mineiros, trabalhe pela restauração
em sua inteireza do artigo 52, parágrafo único.
Dedicado há várias décadas ao ofício de observador diário da realidade
política brasileira, tenho para mim que o srs. Lewandowski e Calheiros
se imbuíram de uma noção de política residualmente existente em qualquer
país, mas que no Brasil prosperou e se adensou num grau inusitado
durante os governos de Lula e Dilma Rousseff. Refiro-me, como é óbvio, a
uma tendência a dilatar os espaços da esperteza em detrimento do
respeito à letra e ao espírito das regras do jogo democrático. O
expediente a que recorreram no dia 31 de agosto, com o ambiente
brasileiro já profundamente transformado pelo combate à corrupção
sistêmica orquestrada pelo PT, dá e sobra como evidência dessa
afirmação. Se chegaram a tanto nesse clima de enérgica exigência que os
cidadãos ora vivenciam, é de perguntar aonde mais chegariam nos tempos
menos transparentes que, felizmente, estão ficando para trás.
Sabemos que todo brasileiro questiona a memória curta dos demais. Seria
deveras lamentável se tal questionamento se mostrasse verdadeiro nesse
caso, e pior ainda se os excelentíssimos integrantes do STF relegassem
ao olvido a famigerada sessão de 31 de agosto. Infelizmente, o que se
costuma denominar “memória curta” é apenas a parte superior de um
iceberg; a parte imersa, muito maior, é um composto de impotência,
indiferença e descrença cívicas, às vezes reforçado por certa preguiça
mental. Por antigos e generalizados que sejam em nossa sociedade tais
sentimentos, parecem-me descabidos na conjuntura que ora se abre, por
três motivos que passo a expor.
O primeiro é o fim da hegemonia petista. O desastre econômico – dois
anos de recessão e 12 milhões de desempregados – já seria suficiente
para provocá-lo. Mas a Lava Jato, escancarando a gigantesca teia de
corrupção arquitetada pelo partido, bateu outro prego no caixão petista.
A eleição de amanhã certamente baterá mais um. Nada avaliza melhor essa
previsão do que as patéticas aparições de Lula nos comícios e o número
de candidatos petistas que se esmeram em esconder as cores e os símbolos
da sigla. Desaparecer o PT não vai, mas tão cedo não resgatará a antiga
imagem de paladino da ética.
O segundo motivo, decorrência do anterior, é que o petismo não intimida
mais ninguém. Lula pode blefar à vontade, pois agora, realmente, a praça
é do povo, não dos bandos estridentes que outrora conseguia mobilizar.
Acrescente-se que a parcela da sociedade que não reza por seu catecismo
está mobilizada para a mãe de todas as guerras: a de ideias. Nesse
aspecto, a ideologia petista – uma mescla mal ajambrada de milenarismo,
populismo e suposta sensibilidade social – está com os dias contados.
Terceiro, e não menos importante, o governo Temer, consertando passo a
passo a economia, reunirá condições para repor o processo político do
País em seus devidos trilhos. Aqui não me refiro necessariamente a uma
reforma institucional abrangente, sabidamente difícil, muito menos a
alguma mágica ou utopia. Refiro-me apenas à reconstituição de um modus faciendi adequado,
assentado sobre uma base parlamentar de centro. Nenhum regime
democrático funciona a contento sem uma base desse tipo, e não era mesmo
concebível que o PT – notoriamente ambivalente a respeito da
alternância no poder, pedra angular da democracia representativa –
pudesse desempenhar tal papel. Quem acreditou nisso pode muito bem
acreditar em Papai Noel.
extraídaderota2014blogspot
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