por Ricardo Breier.
(Publicado originalmente em www.conjur.com.br)
A Administração Pública no Brasil corrompe, porém é igualmente corrompida. Eis um fato histórico que transcende ideologias e até mesmo ao tempo[1]. Sua afirmação diária, levada a cabo por agentes públicos e privados submersos em uma cultura profundamente patrimonialista é de fato o aspecto fundante das relações sociais no Brasil, o país do “jeitinho”. A corrupção, para bem mais do que simplesmente corroer o Erário, destrói a confiança do cidadão no Estado, gerando um impacto nefasto em todas as áreas da sociedade.
Se de um lado a mais primacial das atividades estatais é a aplicação isonômica da lei, de outro a corrupção nada mais é do que a subversão da norma por aqueles que têm a função precípua de guardá-la e de fazer cumpri-la. Veja-se que a chaga da corruptela ataca o cerne do sistema institucional: a lei (o veículo de emanação do Estado de Direito) e seus executores (os agentes públicos). Nesta linha, bem se diz que, no plano constitucional, a corrupção constitui-se em um dos mais claros e evidentes exemplos de uso fraudulento do poder[2].
Daí a evidência de que a corrupção é a contrafação da democracia, pois mina diuturnamente a relação entre o Estado e os cidadãos, que passam a ver as instituições como um verdadeiro Leviatã, sempre pronto a tragá-los. Neste passo, resta evidente que a corrupção é a privatização do espaço público, é o uso e abuso daquilo que é de todos em desfavor de quase todos, motivo que explica o porquê de ser um dos maiores objetos de estudo da comunidade científica no mundo civilizado, que diuturnamente busca saídas para estancar a sangria nos cofres públicos e na credibilidade das instituições.
Apesar disto tudo, o Estado vem perdendo vergonhosamente a guerra contra a corrupção, como bem se sabe.
Realidade atual, resta claro que temos a necessidade de reavaliar as ações do poder público que visam a combater a corrupção, não apenas no plano estritamente normativo, mas, principalmente, na aplicação factual da norma anticorruptiva. Países como a Inglaterra[3], Itália[4] e Estados Unidos[5] vêm trabalhando incessantemente em novas estratégias de combate à peita, lastreadas na gestão estratégica da informação e em programas governamentais voltados a hostilizar estruturas corporativas corruptoras.
Na busca por soluções efetivas, tais países foram buscar na experiência da iniciativa privada o indicativo de solução para o problema. Afinal, o mundo corporativo vem tendo excelentes resultados no combate aos desvios éticos através do desenvolvimento de uma ferramenta já bem conhecida do mundo jurídico: os programas de compliance. Atento a este fenômeno, os governos daqueles países tiveram a sabedoria e a humildade de nele se embeberem, acertadamente apropriando-se de toda uma cultura de eticidade construída ao longo de mais de três décadas.
Com efeito, referidos programas são desenvolvidos a partir de um mecanismo regulatório paradigma que visa, entre tantos objetivos, a prevenção dos atos ilícitos praticados por funcionários, tanto no interior quanto no exterior de uma empresa. Ou seja: a regra matriz não cobra um comportamento ético, consoante as normas morais e legais de boa conduta, apenas dentro do ambiente corporativo, senão também nas relações que a empresa tem com a sociedade, aí inclusa a relação com seus fornecedores, seus consumidores e com o próprio Estado.
Nesta senda, a materialização dos programas de compliance dá-se pelos denominados códigos de condutas[6], através dos quais há a promoção de uma cultura do cumprimento de regras[7] no interior da empresa, por parte de todos seus funcionários, do mais alto escalão até o menor no processo hierárquico corporativo, a denominada prática da boa governança corporativa.
Seguindo o contexto internacional, o Brasil, através da Lei 12.846/13 (Lei Anticorrupção), impõe legalmente que as empresas do setor privado adotem o chamado Programa de Integridade[8] (artigo 41, Decreto 8.420/15), cuja a finalidade está destinada diretamente à evitabilidade de práticas corruptivas contra a Administração Pública, nacional ou estrangeira. Logo, nos dias atuais, não há como uma empresa privada concorrer a certame licitatório (concessões) sem deter um programa de compliance que seja capaz de atestar o controle dos riscos de sua gestão. Aqui, resta claro que tais programas funcionam como verdadeiros mecanismos de acreditação, credibilidade e transparência[9], modo de salvaguardar o interesse público de contratação de empresas idôneas para servirem à coletividade.
Contudo, em postura absolutamente contraditória, o mesmo Estado brasileiro que exige legalmente das empresas que pretendam com ele contratar deterem rígidos programas internos de controle e integridade, não investe em programas de gestão preventiva anticorrupção. Pois a realidade é posta: o que existe são leis que visam represar a corrupção[10] e órgãos fiscalizatórios de natureza eminentemente repressiva. No Brasil, infelizmente, há a cultura de “se chorar o leite derramado”, sendo que os códigos de conduta de caráter orientativo e preventivo existentes na Administração, visando ao controle dos atos administrativos, são absolutamente genéricos. Contenta-se apenas em reprisar conceitos legais já existentes, os quais são naturalmente amplos e abertos, sendo absolutamente ineficazes, como bem nos mostra o noticiário.
Desta feita, se agiganta como o grande desafio da Administração Pública brasileira na atualidade a implantação de programas de compliance de natureza pública, pormenorizadamente customizados para a realidade estatal, não apenas aproveitando a riqueza da experiência vitoriosa no combate à corrupção advinda do setor privado no além-mar, como igualmente criando estruturas responsáveis pela educação efetiva do gestor público, forte na criação de uma cultura de boa governança. Frisamos aí a palavra “efetiva”, uma vez que tudo o que foi feito até aqui simplesmente falhou, não apenas pela falta de densidade em seu conteúdo, como pela ausência de sinceridade de propósitos na efetivação dos códigos de conduta. Aliás, nossa história é rica na produção de normas “para inglês ver”.
Por outro lado, afirme-se desde já que as diferenças de logística e de estrutura entres os setores público e privado não são fatores impeditivos para a implantação de programas de compliance[11]. Ambas as estruturas administrativas, privada e estatal, têm o desenvolvimento de atividades-meio muito semelhantes, apenas diferindo em sua finalidade.
Não é sem propósito, pois, que Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, adotada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas em 31 de outubro de 2003 e ratificada pelo Brasil através do Decreto 5.687/06, em seu artigo 5º, já referencia a necessidade de instituição de um programa de gestão pública para assuntos que digam respeito a temas como: bem público, integridade, transparência e controle das contas públicas. No artigo 8º do mesmo diploma há a disposição clara acerca de implementação de Códigos de Conduta para servidores públicos, que visam a combater preventivamente a corrupção, através do desenvolvimento institucional de princípios relacionados à integridade, à honestidade e à responsabilidade do agente estatal.
Outrossim, esta orientação da Convenção nada mais é do que a determinação de que o setor público crie mecanismos eficazes de controle interno. Repise-se: eficaz. Um sistema realmente capaz de garantir a legalidade e transparência na função pública, principalmente no que concerne à contratação por parte da Administração, ponto nevrálgico da interação do Estado com os particulares no que diz respeito à corrupção[12].
De igual modo, a Convenção Interamericana contra a Corrupção de 29 de março de 1996, também ratificada pelo Brasil através do Decreto 4.410/02, define claramente o conceito de corrupção para fins daquele tratado e determina que os Estados signatários deverão adotar normas de conduta para o desempenho da função pública, visando estabelecer medidas e sistemas que exijam dos servidores condutas íntegras para o exercício da gestão pública, com o fim de prevenir, detectar e punir atos de corrupção no exercício de suas funções.
Note-se que o tratado em referência faz alusão à implementação de sistemas. Ora, um sistema é um todo organizado tendente a um fim. E isto é o que menos o Brasil tem no momento na área de prevenção à corrupção, visto que as parcas iniciativas neste sentido são realizadas de maneira isolada. Temos, isto sim, que pensarmos a corrupção como um fenômeno sociológico, apenas tratável por meio do esforço de toda a Nação, firme na implementação de uma cultura de probidade. E cultura cria-se através da reiteração de práticas ao longo do tempo, as quais, in casu, apenas poderão ser induzidas por meio de atividade estatal consciente e planejada. Ao nosso ver, tal atividade se corporifica plenamente na implantação de programas decompliance altamente específicos à realidade de cada setor da Administração.
Exemplo disto é a recente Lei Anticorrupção da Itália (190/2012) que, seguindo as orientações das Convenções Internacionais, é uma lei que ingressa na seara pública com efetividade, no sentido de prevenir a corrupção através do modelo de autorregulação da Administração Pública. Como existe no compliance privado, o norte do novo modelo de ações preventivas está na incorporação dos chamados códigos de conduta específicos, um código ético, por parte dos servidores. Em suma: um código específico para cada setor da Administração, levando em conta suas particularidades, sendo indispensável que os próprios servidores possam participar diretamente de sua elaboração, especialmente aqueles ligados aos órgãos de controladoria e de gestão jurídica. Isto, na visão do legislador italiano, poderá levar à prevenção de atos de corrupção de maneira mais efetiva, uma vez que os Código ou Estatutos de servidores têm se mostrado inúteis, justamente por serem demasiadamente genéricos.
Mesmo modo ocorre nos Estados Unidos, considerados como os grandes precursores ne implantação de Códigos de Conduta para a prevenção de atos ilícitos na seara pública. Duas foram as normas de cumprimento iniciadas ainda nos anos 70. Tanto a Foring Corrupt Pratique Acto de 1977 (FCPA) quanto a Ethic in Government Act exigem maior transparência dos funcionários públicos no exercício de suas funções. Referidas leis são verdadeiros marcos regulatórios voltados a implantação de medidas administrativas, cíveis e criminais contra a prática de corrupção envolvendo funcionários públicos e empresas. Com isto o setor público americano voltou-se fortemente para a construção de uma ética pública, aliada a uma política de sistemática prevenção e identificação de práticas lesivas ao erário. Nesta esteira, a padronização dos procedimentos via normalização aguda das atividades pelos próprios órgãos da Administração (exercendo plenamente a faculdade de autorregulação), acabou por implementar os sistemas de controle interno, de organização e de fiscalização. Não foi surpresa que, em um contexto como o agora descrito, a transparência na gestão e a integridade dos agentes públicos floresceram, uma vez que os servidores se tornaram verdadeiros partícipes do sistema de controle, minimizando os casos de corrupção, principalmente nas contratações públicas.
Ante o exposto, compartimos da ideia do jurista Fábio Medina Osório[13], de que os regulamentos de conduta pública, nos termos hodiernamente propostos no Brasil, nada mais são do que um regulamento geral sem especificações, frouxo por natureza e naturalmente esquálido em seus efeitos. Aliás, ao que nos parece, tal generalidade não foi posta à toa. Distando quilômetros da realidade, e sem a menor preocupação com a efetividade, tais regulamentos frustram a expectativa popular, que acaba por desacreditar no “sistema” de controle público[14] exercido pelo Estado.
E é frente a esta realidade que há, ao nosso modo de ver, um vasto espaço para o debate acerca da viabilidade de implementação de programas decompliance no setor público.
Os programas de compliance adotados pelas corporações privadas podem ser uma experiência de grande valia para o setor público.
Como já visto, a legislação atual mais próxima de uma estrutura dos princípios de compliance na Administração Pública é a italiana, que na lei 190/2012 traz em seu artigo 1.9 diretrizes de um plano anticorrupção.
A orientação legal italiana diz que o Estado tem que investir num plano trienal anticorrupção, o que evidencia a necessidade de planejamento contínuo das ações versando sobre a proteção do Estado, e mais: que cada setor da Administração Pública deve, de acordo com sua realidade, criar um programa de cumprimento capaz de enfrentar atos de corrupção atentatórios ao interesse público. Entre as orientações de plano de cumprimento estão:
• Identificar nas atividades públicas quais os setores com elevado risco de corrupção;
• Estabelecer regras e desenvolver atividades onde for identificado riscos de corrupção e criar mecanismos de controle preventivo;
• Criação de mecanismos de supervisão constante sobre os programas que devam ser implantados no setor público, indicando claramente qual o modo de supervisão de atividades com risco corruptivo.
Repisando a orientação da Lei Anticorrupção da Itália: cada órgão público deve criar seu estatuto básico, uma regra matriz para cada realidade, ao invés das leis gerais que temos atualmente. Enfim, um programa específico e pormenorizado, que não apenas identifique as atividades que potencialmente gerem atos de corrupção, como igualmente introduza maneiras de se gerir tais riscos, de forma a mitigá-los. Um programa de internalização de normas de conduta por parte dos servidores, de divulgação de regras claras acerca do que fazer e do que não fazer, de comunicação para atender as dúvidas dos servidores sobre a interpretação dos códigos de ética anticorrupção, de regras de procedimentos de investigação interna e sobre os canais de denúncia, inclusive implementando o pagamento de recompensa para os servidores que denunciem atos lesivos ao patrimônio público.
Por fim, nos parece óbvio o ganho que a Administração Pública irá auferir com a institucionalização de normas de controle específico para cada órgão que a compõe (public compliance). Realmente, ganham os agentes políticos e servidores públicos honestos, que terão suas atividades resguardadas; e ganha a população, que não apenas terá maiores instrumentos de garantia de não privatização do espaço público, como verá o desenvolvimento diuturno de princípios de probidade tendentes à formação de uma cultura ética, benéfica a toda a Nação. O desafio do public compliance está posto!
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1 Ver HABIB, Sérgio. Brasil: Quinhentos anos de corrupção. Porto Alegre: Fabris, 1994 e GIL VILLA, Fernando. La cultura de la corrupción. Madrid: Maia Ediciones, , 2008.
2 NIETO, Adán. El desgobierno de lo público. Barcelona Ed. Ariel, 2012.
3 UK Bribery Act of 4 de abril 2010.
4 Legge Anticorruzione n 190/2012.
5 FCPA e Ethics in Government Act, 1977.
6 Instrumento regulatório que contém o sistema de orientações para que a empresa adote como forma de integração de valores e de práticas estratégicas para sua melhor organização, visando principalmente a incorporação de princípios fundamentais para a efetivação de sua função no meio social. Todas as regras de qualquer Código de Conduta empresarial estão intimamente relacionadas com práticas éticas na condução negocial de qualquer natureza. Uma corporação empresarial que tenha um efetivo Código de Conduta, aliás uma exigência já em várias políticas internacionais como em várias legislações locais, como forma de combate a corrupção, está fortalecida, principalmente pela transparência, confiabilidade e segurança de como atua no mercado ( MORATO GARCÌA, Rosa. Incumplimiento de los códigos de conducta y potestade disciplinaria de empresário.Madrid: La Ley, 2011,p. 414 e ss.
7 Compliance Programmes. Standards Australia 1988.
8 Vários são os termos relacionados como o Compliance além deste referenciado pelo Brasil: Gestão de risco, Valor de Gestão, Governança corporativa, Código de Integridade, Códigos de Conduta e Responsabilidade Social Corporativa.
9 Muitos autores definem esta pratica como um mecanismo privado de combate a corrupção.
10 Lei de Ação popular n. 4.717/65, Lei de Ação Civil Pública n. 7.347/85, Lei de Improbidade Administrativa n. 8.429/92, Lei do Processo Administrativo Federal n. 9.784/99, Lei de Licitações n. 8.666/93, Lei de Responsabilidade Fiscal LC n. 101/00, Lei de Crimes de Responsabilidade n. 1097/50, Lei de acesso a Informação n. 12.527/11, Lei do Funcionalismo Público n. 8.112/90 e os Códigos Penal e Eleitoral além de outras,
11 DUBOIS, Richard. Inovações na gestão pública. Saint Paul Editora: São Paulo, 2012, p. 19 e ss.
12 Ver SÁNCHEZ, Isabel. La integridade em la contratación pública. OCDE: Madrid, 2009.
13 In. Teoria da Improbidade administrativa. São Paulo: RT, 2013, p. 180.
14 CADE, CVM, CGU e TCU (há também órgãos de controle na esfera estadual e municipal).
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