por José Casado O Globo
Não havia inocentes: para demonstrar desdém pelo governo que está aí, 445 deputados federais decidiram passar por cima da cláusula pétrea da separação dos Poderes
A Câmara dos Deputados atropelou a Constituição. Atingiu uma das
chamadas cláusulas pétreas do regime republicano, semana passada, quando
seu presidente conduziu a alquimia parlamentar que catalisou
sentimentos antigoverno em todos os partidos, inclusive no PT de Lula e
Dilma, resultando numa derrota humilhante para a Presidência da
República.
Prolixa, com cerca de 40 mil palavras, a Carta é objeto de fetiche de
deputados e senadores. Está em reforma contínua há 26 anos.
Já passou por quase uma centena de plásticas — numa delas, em 2004,
modificaram-se 25 dispositivos de uma só vez. Há mais 1,5 mil propostas
de emenda em tramitação.
Pode-se alterar quase tudo, em dois turnos e com com dois terços da
Câmara e do Senado. Nem tudo, porém, é mutável. Num conjunto de três
dezenas de palavras resguardou-se o núcleo de princípios democráticos,
petrificando a segurança e a certeza jurídica na República.
São normas que limitam o poder de reforma, até mesmo por emenda. Proíbem
expressamente iniciativas tendentes a abolir fundamentos dos direitos e
garantias individuais; do voto direto, secreto, universal e periódico;
da forma federativa de Estado, e, da separação dos Poderes.
Na madrugada de quinta-feira, enlevados por seu desgosto com o governo e
incitados pelo aplauso da torcida organizada pelo sindicalismo, 445
deputados resolveram passar por cima da cláusula pétrea da separação dos
Poderes.
Aprovaram emenda constitucional que abre a porta para aumentos da
remuneração de algumas categorias de servidores públicos (advogados,
delegados, peritos e auditores) até o limite de 90,25% do subsídio
mensal recebido pelos juízes do Supremo Tribunal Federal.
O privilégio é para a minoria, a elite do funcionalismo que comanda a burocracia nos municípios com mais de 500 mil habitantes.
É despesa nova, estimada em R$ 10 bilhões anuais durante o próximo
triênio. Começou a ser criada pela força do voto de 95% dos deputados
presentes na sessão, numa cristalina demonstração de desdém pelo governo
que está aí.
Para quebrantar Dilma, até 56 deputados petistas alinharam-se ao presidente da Casa Eduardo Cunha, à 1h52m de quinta-feira.
Não há inocentes naquele plenário. Cunha, por exemplo, evitou marcar o
segundo turno de votação da PEC (número 443). Não poderia sequer negar
consciência da colisão contra o princípio elementar de separação dos
Poderes, cuja criação remonta à antiga Grécia, porque assistira, no
plenário, advertências sobre “hipocrisia” dosadas por reiterações do
anúncio governamental de apelo ao Supremo.
Todos os 468 no plenário sabiam que remuneração ou organização
administrativa no Executivo estão classificados pela Carta como algo da
“iniciativa privativa” do presidente da República. Alguns até exibem no
gabinete de trabalho obras de juízes do STF, como Luis Roberto Barroso,
com trechos realçados, como esse: “Há conteúdos que não podem constar de
emenda, por força de interdições constitucionais denominadas cláusulas
pétreas”.
Fazer oposição a qualquer governo é sempre legítimo no jogo político. O
problema está na promoção, a qualquer pretexto, de conluio partidário
para atropelar a Constituição, em esculacho à democracia.
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