Jornalista Andrade Junior

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

O tigre de papel


O Brasil já foi chamado “o país dos bacharéis”. O bacharelado – ou diploma universitário, em geral – costumava ser, na prática, a prova de que seu portador pertencia à classe média urbana. A formação universitária propriamente dita, ainda que melhor que a atual, importava menos que a existência do “canudo de doutor” (e todo bacharel era “doutor”; mestrado e doutorado eram coisas de estrangeiros).
De lá pra cá muito mudou, mas a importância relativa dos papeizinhos dotados de poderes mágicos só aumentou. Para que se possa considerar que mais gente pertence à classe média, o governo facilita o acesso a cursos superiores em função de critérios absolutamente irrelevantes do ponto de vista acadêmico, muda a faixa de renda que caracteriza a pobreza; em suma, muda o papel. Distribui papéis. É o papel que faz a realidade.
A mesma idolatria pelo papel explica sermos ao mesmo tempo um dos países em que é mais difícil conseguir habilitação para dirigir – requerendo cursos teóricos e práticos em veículos especialmente adaptados ao exame psicotécnico – e o terceiro lugar mundial em mortes no trânsito. O primeiro e o segundo lugar têm mais de um bilhão de habitantes cada, e bem menos mortes por cem mil habitantes. Em outras palavras, somos os campeões!
Ainda é a mesma papelucholatria que faz com que seja praticamente impossível conseguir autorização para porte de arma, mas tenhamos quase quatro vezes o número de mortes por arma de fogo que os “violentos” EUA.
Multidões de analfabetos funcionais lotam os bancos universitários e ganham seus canudos sem nunca terem lido um livro inteiro. Multidões de habilitados atropelam, colidem e fazem barbeiragens em geral, sendo condenados – após um processo judicial que implica em pilhas enormes de papel e leva alguns anos para ser concluído – a pagar cestas-básicas quando matam uma família. Os professores não podem instruir, mas os alunos são automaticamente aprovados para que não deixem de receber seus papeizinhos mágicos; a polícia não pode investigar, mas cada ocorrência é criteriosamente registrada em fartas resmas e carimbada várias vezes antes de ser arquivada. Carregamos carteirinhas do SUS, sabedores de que sem elas não conseguiremos uma vaga no corredor do hospital para agonizar em paz. Somos todos identificados por carteiras de identidade, e temos a certeza de ter nascido que só uma certidão de nascimento pode dar.
No papel, somos os campeões. No papel, somos uma potência.
Pena que papel aceita qualquer coisa.


Carlos Ramalhete
é professor.
 

Publicado no jornal Gazeta do Povo.

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