Sebastião Ventura P da Paixão Jr - O Estado de S.Paulo -
Após muitas dúvidas e pressões de toda ordem, a colenda Suprema Corte foi modelar no julgamento da Ação Penal 470, o famigerado mensalão. Aos olhos de todos e sem rebuços, os fatos foram postos e as provas, analisadas com rigor técnico, o devido processo legal foi respeitado para todos os litigantes, vindo, ao final, o veredicto com o saber inerente das decisões colegiadas. Se a Corte acertou ou errou, os eventuais prejudicados poderão fazer uso da ampla defesa e utilizar os recursos potencialmente cabíveis com vista a reformar o que mal está.
Texto completo Naturalmente, os magistrados supremos não são deuses e, como homens e mulheres que são, estão sujeitos à falibilidade humana.
Além disso, compete à crítica jurídica fazer a sua parte, apontando eventuais equívocos e realçando a higidez técnica das posições vencedoras. Enfim, o histórico processo seguirá seu trâmite normal, trazendo consigo a certeza de que o Brasil está melhor. E está melhor porque não existe democracia digna sem responsabilidade política. O Supremo, assim, cumprindo o seu dever constitucional, deu importante passo para o aprimoramento institucional brasileiro.
Apesar
de julgado, o mensalão, na crueza dos seus tristes fatos, revela uma
certeza preocupante: a democracia brasileira foi posta em xeque e correu
o risco de ter virado pó. Não se trata de um juízo meramente subjetivo
nem despido de razões substanciais. Afinal, os fatos, antes
questionáveis, com o julgamento ganharam foro de indiscutibilidade. Em
outras palavras, a partir da pontual e objetiva peça de acusação, a
abalizada maioria da Suprema Corte reconheceu a existência de uma
estrutura criminosa, arquitetada nas entranhas do poder, cujo objetivo -
mediante compra ilícita e corrupta de apoio congressual - era subjugar o
Legislativo aos desideratos imperiais de determinado grupelho político.
Se vingasse o plano delituoso, as eleições presidenciais virariam um
jogo de cartas marcadas em favor de tiranos fantasiados de democratas
populares. Passou perto. Com a graça dos céus, foi-se. Agora, será que
pode voltar? A pergunta, por inquietante e imprevisível, merece profunda
reflexão.
Pois bem, nos límpidos termos da
Lei Fundamental da República, o mensalão foi um caso acadêmico de
impeachment. Objetivamente, além de um atentado contra a própria
Constituição federal, a conduta criminosa violou o livre exercício do
Poder Legislativo, agrediu o desempenho soberano dos direitos políticos e
violentou explicitamente a probidade na administração pública, ou seja,
o mensalão está capitulado no artigo 85, caput, incisos II, III e V da
Carta de 88. Por assim o ser, nos termos do artigo 86 da Lei
Constitucional, o processo deveria ter sido instaurado perante a Câmara
e, uma vez admitida a acusação pelo quórum especial de dois terços, o
feito teria de ter sido encaminhado ao Senado para o consequente
julgamento dos possíveis crimes de responsabilidade. Por motivos
ignorados, a regra constitucional não teve o prestígio merecido.
Acontece
que o impeachment é um processo anacrônico, lerdo e solene, contrário à
dinâmica dos fatos políticos e à própria velocidade natural dos
acontecimentos. Logo, o trâmite processual, em vez de paz social, pode
causar traumatismos ainda maiores, sendo cogente, portanto, uma
conjunção especial de fatores a legitimar o início do procedimento de
responsabilização pública. Aqui, aliás, estamos diante de uma das
principais deficiências do sistema presidencial: o vagaroso processo de
responsabilização do governo. Aquilo que, no sistema parlamentar, é
resolvido em questão de horas com a moção de desconfiança e queda do
Gabinete constituído, no presidencialismo gera um processo político
moroso que, em certas circunstâncias, pode levar o país a um perigoso
brete institucional. É certo que no caso Collor - ainda no amanhecer da
democracia brasileira e no fulgor do desejo de livre e direta
participação política - condições especialíssimas se verificaram a
autorizar um canônico desenrolar processual. Todavia, na generalidade
das hipóteses de infração político-administrativa do presidente da
República, serve a nobre advertência de Raul Pilla de que o processo por
crime de responsabilidade é "um canhão de museu, que existe para ser
visto, e não para ser utilizado".
Embora
fosse um exército de um homem só pela ideal parlamentarista, o catecismo
de Pilla encontrou eco e voz em outra proeminência inigualável da vida
política e jurídica brasileira. Com a agudeza encantadora dos espíritos
superiores, Paulo Brossard, em conhecida e insuperável monografia sobre o
tema do impeachment, escreveu como se enxergasse o futuro: "Suponha-se
um presidente desabusado, violento, agressivo, inescrupuloso, corruptor,
que recorra aos imensos poderes e recursos sobre os quais o governo tem
mão, e com eles desencadeie luta contra o Congresso". E concluiu com a
precisão habitual: "Antes que o processo chegasse em meio, teria ele
levado o país à desordem, à violência, à convulsão, ao caos, ao pânico".
A análise do eminente jurista gaúcho é absolutamente irretocável,
expondo com nitidez e clareza uma das mais graves deficiências do
sistema presidencial: o processo de responsabilização do governante é um
convite à irresponsabilidade política. E democracia sem
responsabilidade é como um casamento sem amor: enquanto os interesses
coincidirem, vive-se uma infindável felicidade de aparências. Depois, as
máscaras caem e, aí, salve-se quem puder.
Apesar
de todos os usos e abusos do mensalão, a democracia brasileira
sobrevive e, a partir do firme e seguro desempenho do Supremo Tribunal,
sai do episódio com força para não mais tolerar a impunidade reinante.
Mas é bom que fique registrado que não se deve brincar com certos
perigos políticos, pois o arbítrio é um convidado indigesto que não pede
para entrar e faz de tudo para ficar. Agrava a situação este
presidencialismo de partidos tíbios que enfraquece o papel político do
Parlamento e faz pensar que o ocupante do Palácio do Planalto é rei.
Enfim,
cabia impeachment, mas ele não viu e não sabia de nada. Aliás, será que
um dia ele falará o que sabe e bem viu? Ou será que a língua o gato
comeu?
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