BRUNO BODART
Começou
o horário de verão. Não há dúvida que este período desperta as mais
diferentes paixões: há os que adoram a possibilidade de aproveitar o
lazer à luz do fim de tarde quando saem do trabalho e também os que
odeiam adaptar o seu sono para acordar uma hora mais cedo. Seja qual for
a sua preferência pessoal, não se pode considerar trivial o fato de
que, por imposição do governo, todos somos obrigados a modificar suas
rotinas e seus relógios. Se Einstein desafiou o conceito newtoniano de
tempo, nossos reguladores desafiam o nosso ritmo circadiano – ou seja, o
ciclo biológico diário a que o nosso corpo está habituado. É claro que o
sistema de fusos horários é uma convenção, mas a mudança repentina para
outra faixa horária é um constrangimento cujas consequências são pouco
questionadas na sociedade. E qual a justificativa?
O horário
de verão é fixado por decreto do Presidente da República, com base em
uma norma da era Vargas, o Decreto-Lei nº 4.295/1942 (que hoje tem
“status” de lei). De acordo com esse Decreto-Lei, o horário de verão tem
por objetivo “a redução do consumo” de energia elétrica no país.
Atualmente, impõem a medida os Decretos nº 6.558/2008 e 8.112/2013. Se é
essa a justificativa legal, é possível questionar a validade do Decreto
nos casos em que o objetivo de redução do consumo de energia não seja
alcançado. Afinal, a norma tem mais de 70 anos, época em que não se
cogitava o amplo uso de ar condicionado para contornar o calor antes do
anoitecer, nem a utilização de lâmpadas mais econômicas.
Na realidade, o horário especial de verão foi elaborado com base em proposta de Benjamin Franklin, em um de seus primeiros estudos estatísticos: “An Economical Project”,
de 1784. Franklin observou que as comodidades modernas desajustariam as
atividades humanas, pois em vez de se pautarem pelo nascer e pôr do
sol, determinam-se artificialmente pelo relógio. Ele sugeriu que esse
desajuste causaria um prejuízo milionário à cidade de Paris anualmente,
correspondente ao custo de iluminação pelas técnicas de então – e propôs
tributação para janelas fechadas, racionamento de velas e tiros de
canhão ao amanhecer para acordar a população. Todavia, não parece
razoável assumir acriticamente que uma proposta do século XVIII continua
adequada para a realidade atual – se é que era correta para a época.
Para
averiguar se a regra realmente atinge seus objetivos é essencial
consultar pesquisas empíricas sobre o assunto. Um estudo de
pesquisadores da Universidade da Califórnia, que considerou a introdução
do horário de verão no estado de Indiana em 2006, concluiu que essa
medida gerou um aumento de até 4% no consumo de energia, correspondente a
um aumento de gastos pelos consumidores da ordem de US$ 9 milhões. Além
disso, os custos sociais gerados pelo aumento da poluição foram
calculados em até US$ 5,5 milhões. Os autores associam os resultados a
uma possível compensação entre a diminuição na demanda por iluminação e o
aumento na demanda por climatização.
Em outro estudo,
de 2007, pesquisadores da Universidade de Berkeley observaram o que
ocorreu na Austrália no ano das Olimpíadas de Sydney, em 2000. Três
estados implementaram o horário de verão dois meses antes do habitual, a
fim de facilitar a realização dos jogos. Como as Olimpíadas podem
afetar o consumo de energia, os pesquisadores utilizaram grupos de
tratamento e de controle não suspeitos: o estado de Victoria antecipou o
horário de verão, mas não foi sede dos jogos; e o sul do país não
antecipou o horário de verão, nem recebeu provas olímpicas. As semanas
em que os Jogos Olímpicos ocorreram também foram desconsideradas no
estudo. Concluiu-se que o consumo de energia aumentou com o horário de
verão, principalmente no período da manhã. Esses autores também
criticaram estudo anterior da California Energy Comission (CEC),
que era normalmente invocado para justificar o horário de verão, por
não ser baseado em evidências empíricas confiáveis. Em razão das
críticas, a California Energy Comission (CEC) produziu um novo estudo,
citando expressamente o dos pesquisadores de Berkeley, e concluiu
existir 25% de chances de um pequeno aumento no consumo de energia como
consequência do horário de verão.
É verdade, há estudos
que defendem alguma economia de energia como resultado do horário de
verão. Todavia, a discordância entre os pesquisadores indica ser incerta
e questionável a efetividade da medida. Mais ainda: outras
consequências negativas são relacionadas ao horário de verão pelos
estudiosos.
Um estudo
de 2015 sobre a realidade da Grã-Bretanha e da Alemanha aponta
deterioração na satisfação de vida dos cidadãos em razão da transição
para o horário de verão na primavera, principalmente para indivíduos que
possuem crianças na família. Periódicos brasileiros noticiaram a
conclusão de uma dissertação de mestrado
em psicologia pela Universidade de São Paulo, segundo a qual o corpo
humano levaria ao menos 14 dias para se adaptar ao novo horário,
gerando, nesse período, perda de atenção, fadiga e distúrbios de sono.
Pode
parecer uma bobagem – afinal, o que custa ficar um pouco sonolento para
ajudar o país a, talvez, poupar energia? Ocorre que a falta de sono é a causa de catástrofes,
como oficialmente reconhecido na explosão do ônibus espacial
Challenger, em 1986, e possivelmente do erro humano no desastre de
Chernobyl. Outra consequência dos distúrbios do sono é o aumento do
risco de acidentes de trânsito. Um estudo
publicado em 2016 relacionou o horário de verão a 302 mortes e um
prejuízo social de US$ 2,75 bilhões por acidentes de trânsito no período
de 2002 a 2011, nos EUA. A conclusão segue a linha de estudos anteriores, sobre a realidade daquele país e também do Canadá.
O horário de verão é associado até mesmo a variações no mercado internacional de capitais: há evidências
de que o início da sua vigência é geralmente seguido de retornos
amplamente negativos em índices de mercados financeiros. A mudança
repentina no relógio também é considerada por especialistas a causa de aumento no número e na gravidade de acidentes de trabalho, além de elevar o risco de ataques cardíacos. No Brasil, pesquisadores da Universidade do Estado do Mato Grosso (Unemat) igualmente concluíram que o horário de verão gera aumento no número de mortes por infarto. Segundo estimativas,
o horário de verão causaria um prejuízo de quase US$ 434 milhões nos
Estados Unidos somente por consequências relacionadas ao sono.
E as nossas autoridades, o que dizem? A consultoria do Senado Federal já produziu um estudo,
em 2005, sobre o horário de verão e o setor elétrico. Observando que o
Brasil é o único país em região equatorial a adiantar os relógios
durante o verão, o parecer afirma que isso se justifica como prevenção
em relação ao chamado “risco de déficit” do sistema elétrico, que seria
um risco de insuficiência de chuvas que leve a uma diminuição das vazões
dos rios abaixo das quais pode haver carência de energia. O Operador
Nacional do Sistema Elétrico (ONS) publicou uma nota à imprensa
para informar sobre uma economia que seria gerada pelo último período
de horário de verão. Não conseguimos acesso, contudo, à metodologia
utilizada pelo órgão para chegar às suas conclusões. A nota não realiza
qualquer comparação entre as áreas afetadas pela medida e outras não
afetadas. Além disso, a alegada
economia (R$ 162 milhões) sequer se compara com o dano causado por
políticas equivocadas dos próprios administradores do sistema, como a
Medida Provisória nº 579, que já custou mais de R$ 110 bilhões
em quatro anos. O mesmo governo que impõe a alteração da sua rotina
para economizar, quem sabe, cerca de um real com você por ano, não faz o
dever de casa quando o assunto é evitar prejuízos.
Apesar de existir um projeto de lei
em tramitação no Congresso para acabar com o horário de verão, os
estudos citados acima permitem questionar se essa medida não está em
desacordo com o próprio Decreto-Lei hoje em vigor, já que põem em dúvida
a alegada economia de energia. Pior: é provável que a imposição gere
consequências colaterais que não compensem o eventual benefício
perseguido pelo legislador. Mais ainda, as intenções dos políticos podem
não ser das mais republicanas para a adoção desse tipo de regra: o
Congresso dos EUA, em 1986, ouviu de lobistas
que a indústria de golfe lucraria US$ 400 milhões e a de produtos de
churrasco outros US$ 200 milhões com um mês adicional de horário de
verão. Será legítimo que a sociedade seja tratada como um balão de
ensaio para experimentos dos agentes do governo ou para que setores
específicos sejam beneficiados com maiores lucros? Está aí uma questão
de tirar o sono. Mas nunca é tarde demais para refletir sobre ela.
Bruno Bodart é Juiz de Direito no Rio de Janeiro, Mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Professor convidado da pós-graduação da FGV Direito Rio e visiting researcher pela University of Chicago (EUA).
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