Jornalista Andrade Junior

sábado, 22 de outubro de 2016

Sabe aquele papo que o horário de verão economiza o seu dinheiro? É mentira.

BRUNO BODART

Começou o horário de verão. Não há dúvida que este período desperta as mais diferentes paixões: há os que adoram a possibilidade de aproveitar o lazer à luz do fim de tarde quando saem do trabalho e também os que odeiam adaptar o seu sono para acordar uma hora mais cedo. Seja qual for a sua preferência pessoal, não se pode considerar trivial o fato de que, por imposição do governo, todos somos obrigados a modificar suas rotinas e seus relógios. Se Einstein desafiou o conceito newtoniano de tempo, nossos reguladores desafiam o nosso ritmo circadiano – ou seja, o ciclo biológico diário a que o nosso corpo está habituado. É claro que o sistema de fusos horários é uma convenção, mas a mudança repentina para outra faixa horária é um constrangimento cujas consequências são pouco questionadas na sociedade. E qual a justificativa?
O horário de verão é fixado por decreto do Presidente da República, com base em uma norma da era Vargas, o Decreto-Lei nº 4.295/1942 (que hoje tem “status” de lei). De acordo com esse Decreto-Lei, o horário de verão tem por objetivo “a redução do consumo” de energia elétrica no país. Atualmente, impõem a medida os Decretos nº 6.558/2008 e 8.112/2013. Se é essa a justificativa legal, é possível questionar a validade do Decreto nos casos em que o objetivo de redução do consumo de energia não seja alcançado. Afinal, a norma tem mais de 70 anos, época em que não se cogitava o amplo uso de ar condicionado para contornar o calor antes do anoitecer, nem a utilização de lâmpadas mais econômicas.
Na realidade, o horário especial de verão foi elaborado com base em proposta de Benjamin Franklin, em um de seus primeiros estudos estatísticos: “An Economical Project”, de 1784. Franklin observou que as comodidades modernas desajustariam as atividades humanas, pois em vez de se pautarem pelo nascer e pôr do sol, determinam-se artificialmente pelo relógio. Ele sugeriu que esse desajuste causaria um prejuízo milionário à cidade de Paris anualmente, correspondente ao custo de iluminação pelas técnicas de então – e propôs tributação para janelas fechadas, racionamento de velas e tiros de canhão ao amanhecer para acordar a população. Todavia, não parece razoável assumir acriticamente que uma proposta do século XVIII continua adequada para a realidade atual – se é que era correta para a época.
Para averiguar se a regra realmente atinge seus objetivos é essencial consultar pesquisas empíricas sobre o assunto. Um estudo de pesquisadores da Universidade da Califórnia, que considerou a introdução do horário de verão no estado de Indiana em 2006, concluiu que essa medida gerou um aumento de até 4% no consumo de energia, correspondente a um aumento de gastos pelos consumidores da ordem de US$ 9 milhões. Além disso, os custos sociais gerados pelo aumento da poluição foram calculados em até US$ 5,5 milhões. Os autores associam os resultados a uma possível compensação entre a diminuição na demanda por iluminação e o aumento na demanda por climatização.

Em outro estudo, de 2007, pesquisadores da Universidade de Berkeley observaram o que ocorreu na Austrália no ano das Olimpíadas de Sydney, em 2000. Três estados implementaram o horário de verão dois meses antes do habitual, a fim de facilitar a realização dos jogos. Como as Olimpíadas podem afetar o consumo de energia, os pesquisadores utilizaram grupos de tratamento e de controle não suspeitos: o estado de Victoria antecipou o horário de verão, mas não foi sede dos jogos; e o sul do país não antecipou o horário de verão, nem recebeu provas olímpicas. As semanas em que os Jogos Olímpicos ocorreram também foram desconsideradas no estudo. Concluiu-se que o consumo de energia aumentou com o horário de verão, principalmente no período da manhã. Esses autores também criticaram estudo anterior da California Energy Comission (CEC), que era normalmente invocado para justificar o horário de verão, por não ser baseado em evidências empíricas confiáveis. Em razão das críticas, a California Energy Comission (CEC) produziu um novo estudo, citando expressamente o dos pesquisadores de Berkeley, e concluiu existir 25% de chances de um pequeno aumento no consumo de energia como consequência do horário de verão.
É verdade, há estudos que defendem alguma economia de energia como resultado do horário de verão. Todavia, a discordância entre os pesquisadores indica ser incerta e questionável a efetividade da medida. Mais ainda: outras consequências negativas são relacionadas ao horário de verão pelos estudiosos.
Um estudo de 2015 sobre a realidade da Grã-Bretanha e da Alemanha aponta deterioração na satisfação de vida dos cidadãos em razão da transição para o horário de verão na primavera, principalmente para indivíduos que possuem crianças na família. Periódicos brasileiros noticiaram a conclusão de uma dissertação de mestrado em psicologia pela Universidade de São Paulo, segundo a qual o corpo humano levaria ao menos 14 dias para se adaptar ao novo horário, gerando, nesse período, perda de atenção, fadiga e distúrbios de sono.
Pode parecer uma bobagem – afinal, o que custa ficar um pouco sonolento para ajudar o país a, talvez, poupar energia? Ocorre que a falta de sono é a causa de catástrofes, como oficialmente reconhecido na explosão do ônibus espacial Challenger, em 1986, e possivelmente do erro humano no desastre de Chernobyl. Outra consequência dos distúrbios do sono é o aumento do risco de acidentes de trânsito. Um estudo publicado em 2016 relacionou o horário de verão a 302 mortes e um prejuízo social de US$ 2,75 bilhões por acidentes de trânsito no período de 2002 a 2011, nos EUA. A conclusão segue a linha de estudos anteriores, sobre a realidade daquele país e também do Canadá.
O horário de verão é associado até mesmo a variações no mercado internacional de capitais: há evidências de que o início da sua vigência é geralmente seguido de retornos amplamente negativos em índices de mercados financeiros. A mudança repentina no relógio também é considerada por especialistas a causa de aumento no número e na gravidade de acidentes de trabalho, além de elevar o risco de ataques cardíacos. No Brasil, pesquisadores da Universidade do Estado do Mato Grosso (Unemat) igualmente concluíram que o horário de verão gera aumento no número de mortes por infarto. Segundo estimativas, o horário de verão causaria um prejuízo de quase US$ 434 milhões nos Estados Unidos somente por consequências relacionadas ao sono.
E as nossas autoridades, o que dizem? A consultoria do Senado Federal já produziu um estudo, em 2005, sobre o horário de verão e o setor elétrico. Observando que o Brasil é o único país em região equatorial a adiantar os relógios durante o verão, o parecer afirma que isso se justifica como prevenção em relação ao chamado “risco de déficit” do sistema elétrico, que seria um risco de insuficiência de chuvas que leve a uma diminuição das vazões dos rios abaixo das quais pode haver carência de energia. O Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) publicou uma nota à imprensa para informar sobre uma economia que seria gerada pelo último período de horário de verão. Não conseguimos acesso, contudo, à metodologia utilizada pelo órgão para chegar às suas conclusões. A nota não realiza qualquer comparação entre as áreas afetadas pela medida e outras não afetadas. Além disso, a alegada economia (R$ 162 milhões) sequer se compara com o dano causado por políticas equivocadas dos próprios administradores do sistema, como a Medida Provisória nº 579, que já custou mais de R$ 110 bilhões em quatro anos. O mesmo governo que impõe a alteração da sua rotina para economizar, quem sabe, cerca de um real com você por ano, não faz o dever de casa quando o assunto é evitar prejuízos.
Apesar de existir um projeto de lei em tramitação no Congresso para acabar com o horário de verão, os estudos citados acima permitem questionar se essa medida não está em desacordo com o próprio Decreto-Lei hoje em vigor, já que põem em dúvida a alegada economia de energia. Pior: é provável que a imposição gere consequências colaterais que não compensem o eventual benefício perseguido pelo legislador. Mais ainda, as intenções dos políticos podem não ser das mais republicanas para a adoção desse tipo de regra: o Congresso dos EUA, em 1986, ouviu de lobistas que a indústria de golfe lucraria US$ 400 milhões e a de produtos de churrasco outros US$ 200 milhões com um mês adicional de horário de verão. Será legítimo que a sociedade seja tratada como um balão de ensaio para experimentos dos agentes do governo ou para que setores específicos sejam beneficiados com maiores lucros? Está aí uma questão de tirar o sono. Mas nunca é tarde demais para refletir sobre ela.




Bruno Bodart é Juiz de Direito no Rio de Janeiro, Mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Professor convidado da pós-graduação da FGV Direito Rio e visiting researcher pela University of Chicago (EUA).

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