No
início de 1918, o líder russo Vladimir Ilitch Lênin tentou impor um
governo soviético sobre o povo da Ucrânia, o qual, apenas um mês antes,
em janeiro, havia declarado sua independência. De início, o objetivo de
Lênin havia sido aparentemente alcançado. Esse governo soviético
imposto à Ucrânia tentou de imediato suprimir as instituições
educacionais e sociais ucranianas; há até relatos sobre a Cheka, uma precursora da KGB, matando pessoas pelo crime de falar ucraniano nas ruas.
Embora
o povo ucraniano tenha, ao final de 1918, conseguido restabelecer sua
república, essa vitória foi efêmera. Lênin, sem dúvida, iria querer
incorporar a Ucrânia ao sistema soviético de qualquer jeito, porém seu
real desejo de assegurar o controle da Ucrânia era por causa de seus
grandes recursos naturais. Em particular, a Ucrânia ostentava o solo
mais fértil da Europa — daí o seu apelido de "o manancial da Europa".
Já
no início de 1919, um governo soviético havia novamente sido
estabelecido na Ucrânia. Porém, esse novo governo soviético acabou se
tornando mais um fracasso. Todos esses eventos estavam ocorrendo
durante a Guerra Civil Russa, e a ajuda de facções rivais contribui para um segundo triunfo da independência ucraniana.
Com esses dois fracassos, o regime de Lênin aprendeu uma valiosa lição. De acordo com Robert Conquest, autor do livro The Harvest of Sorrow (A colheita do sofrimento),
"Concluiu-se que a nacionalidade e a língua ucraniana eram de fato um
elemento de grande peso, e que o regime que ignorasse isso de maneira
ostentosa estaria fadado a ser considerado pela população como uma mera
imposição usurpadora."
Quando
os soviéticos adquiriram o controle da Ucrânia pela terceira e última
vez em 1920, eles constataram que iriam enfrentar uma contínua
resistência e incessantes insurreições a menos que fizessem grandes
concessões à autonomia cultural ucraniana. E assim, pela década
seguinte, os ucranianos basicamente não foram incomodados em seu idioma e
em sua cultura.
Porém,
uma facção dos comunistas russos se mostrou incomodada com isso, e
seguidamente alertava que o nacionalismo ucraniano era uma fonte de
intolerável divisão dentro do quadro militar soviético, e que, mais cedo
ou mais tarde, a situação teria de ser confrontada de alguma maneira.
Avancemos
agora oito anos no tempo. Em 1928, com Josef Stalin firmemente no
poder, a União Soviética decidiu implantar uma política de requisição
compulsória de cereais — uma maneira polida de dizer que o governo iria
tomar à força todo o cereal cultivado pelos camponeses, pagando em troca
um preço fixado arbitrariamente pelo governo, muito abaixo dos custos
de produção. A liderança soviética, em decorrência tanto de informações
equivocadas quanto de sua típica ignorância dos princípios de mercado,
havia se convencido de que o país estava no limiar de uma crise de
escassez de cereais. A requisição compulsória funcionou, mas apenas no
limitado sentido de que forneceu ao regime todo o volume de cereais que
ele julgava ser necessário. Porém, tal política solapou fatalmente a
confiança futura dos camponeses no sistema. Durante a Guerra Civil
Russa, em 1919, para tentar combater a fome da população urbana, Lênin
havia confiscado em escala maciça os cereais de vários camponeses, que
foram chamados de especuladores e sabotadores. Agora em 1928, a
possibilidade de novos confiscos, algo que os camponeses imaginavam ser
apenas uma aberração bárbara da época da Guerra Civil, passaria a ser
uma constante ameaça no horizonte.
Os
camponeses, naturalmente, passaram a ter menos incentivos para
produzir, pois sabiam perfeitamente bem que, dali em diante, os frutos
de seu trabalho árduo poderiam ser facilmente confiscados por um regime
sem lei — o mesmo regime que havia prometido aos camponeses, quando da
promulgação da NEP em 1921, que eles poderiam produzir e vender livremente.
Foi apenas uma questão de tempo para que o regime decidisse embarcar em um amplo programa de coletivização forçada
das propriedades agrícolas, uma vez que a abolição da propriedade
privada da terra era um importante aspecto do programa marxista. Os
camponeses despejados foram enviados bovinamente para enormes fazendas
estatais. Essas fazendas iriam não apenas satisfazer as demandas da
ideologia marxista, como também iriam resolver o grande problema prático
do regime: garantir que uma quantidade adequada de cereais fosse
ofertada às cidades, onde o proletariado soviético trabalhava duramente
para expandir a indústria pesada. Fazendas coletivas estatais
significavam cereais estatizados.
Alguns
especialistas tentaram alertar Stalin de que seus objetivos, tanto
industriais quanto agrícolas, eram excessivamente ambiciosos e estavam
em total desacordo com a realidade. Mas Stalin nem queria ouvir. Um de
seus economistas, diga-se de passagem, chegou a afirmar que "Nossa
tarefa não é estudar a ciência econômica, mas sim mudá-la. Não estamos
restringidos por nenhuma lei. Não reconhecemos leis. Não há uma só
fortaleza que os bolcheviques não possam atacar e destruir."
Paralelamente
à política de coletivização forçada implantada por Stalin, ocorreu
também uma brutal campanha contra os grandes proprietários de terras,
fazendeiros ricos conhecidos como "kulaks",
os quais o governo temia liderarem movimentos de resistência contra a
coletivização. Mas era uma fantasia de Stalin imaginar que apenas os
kulaks se opunham à coletivização; toda a zona rural estava unida contra
o governo. (Até mesmo o Pravda noticiou um incidente no qual
uma mulher ucraniana tentou bloquear a passagem de tratores que estavam
chegando para começar a trabalhar nas fazendas coletivizadas; a mulher
gritara "O governo soviético está recriando a escravidão!").
Stalin
falava abertamente de sua política de "liquidar toda a classe dos
kulaks"; eles eram a classe inimiga da zona rural. Com o passar do
tempo, como era de se esperar, a definição padrão de o que constituía um
kulak foi se tornando bastante ampla, até finalmente chegar ao ponto em
que o termo — e as terríveis penalidades que eram aplicadas a todos
aqueles infelizes a quem o termo era aplicado — podia ser aplicado a
praticamente qualquer camponês.
Uma
historiografia sobre o Partido Comunista, autorizada pelo próprio,
relatou que "os camponeses caçaram impiedosamente os kulaks por toda a
terra, tomaram todos os seus animais e todo o seu maquinário, e então
pediram ao regime soviético para aprisionar e deportar os kulaks." Como
descrição do reino de terror imposto aos kulaks, esse relato não pode
nem sequer ser classificado como uma piada sem graça. O regime, e não os
camponeses, é quem perseguiu os kulaks. No final, de acordo com uma
testemunha ocular, para que um homem fosse condenado a um destino cruel,
bastava que "ele tivesse pagado algumas pessoas para trabalhar para ele
como empregados, ou que ele tivesse sido o proprietário de três vacas."
As
quase 20 milhões de propriedades agrícolas familiares que existiam na
Rússia em 1929 estariam, cinco anos depois, concentradas em apenas 240
mil fazendas coletivas. Ao longo de grande parte de toda a história
soviética, não era incomum algumas pessoas obterem a permissão para ser
donas, em locais distintos, de alguns poucos acres de terra para uso
privado. Quando Mikhail Gorbachev assumiu o poder em 1985, os 2% de
terra agrícola que eram propriedade privada produziam nada menos que 30%
de todos os cereais do país — uma resposta humilhante para todos
aqueles que ignorantemente afirmavam que a agricultura socializada seria
mais eficiente que a agricultura capitalista, ou que eles poderiam
alterar a natureza humana ou reescrever as leis da economia.
Na
mesma época em que Stalin começou a coletivização forçada, em 1929, ele
também recriou a campanha contra a cultura nacional ucraniana, campanha
essa que estava dormente desde o início da década de 1920. Foi na
Ucrânia que a política de coletivização stalinista deparou-se com a mais
ardorosa e violenta resistência — o que não impediu, entretanto, que o
processo já estivesse praticamente completo por volta de 1932. Stalin
ainda considerava a contínua e inabalável presença do sentimento
nacionalista ucraniano uma permanente ameaça ao regime, e decidiu lidar
de uma vez por todas com aquilo que ele via como o problema da 'lealdade
dividida' na Ucrânia.
A
primeira etapa de sua política foi direcionada aos intelectuais e
personalidades culturais da Ucrânia, milhares dos quais foram presos e
submetidos a julgamentos ridículos e escarnecedores. Após isso, tendo
retirado de circulação aquelas pessoas que poderiam se transformar em
líderes naturais de qualquer movimento de resistência, Stalin passou
então a atacar o próprio campesinato, que era onde estava o real núcleo
das tradições ucranianas.
Mesmo
com o processo de coletivização já praticamente completo na Ucrânia,
Stalin anunciou que a batalha contra os perversos kulaks ainda não
estava ganha — os kulaks haviam sido "derrotados, mas ainda não
exterminados." Stalin começaria agora uma guerra — supostamente contra
os kulaks — direcionada aos poucos fazenderios que ainda restavam e
dentro das próprias fazendas coletivas. Dado que, a essa altura,
qualquer pessoa que por qualquer definição cabível pudesse ser
classificada como um kulak já havia sido expulsa, morta ou enviada para
campos de trabalho forçado, essa nova etapa da campanha soviética na
Ucrânia teria o objetivo de aterrorizar os camponeses comuns. Estes
deveriam ser física e espiritualmente quebrados, e sua identidade de
seres humanos seria drenada deles à força.
Stalin
começou estipulando metas de produção e entrega de cereais, as quais os
ucranianos só conseguiriam cumprir caso parassem de se alimentar, o que
os faria morrer de fome. O não cumprimento das exigências era
considerado um ato de deliberada sabotagem. Após algum tempo, e com a
produção e entrega inevitavelmente abaixo da meta, Stalin determinou que
seus ativistas confiscassem dos camponeses todo o volume de cereais
necessário para o governo ficar dentro da meta estipulada. Como a
produção era baixa, os camponeses frequentemente ficavam sem nada. O
desespero se instalou. Um historiador conta que uma mulher, por
simplesmente ter tentado cortar para si um pouco do seu próprio centeio,
foi levada presa junto a um de seus filhos. Após conseguir fugir da
prisão, ela coletou, com a ajuda do seu filho, alguns poucos itens
comestíveis e foram viver na floresta. Morreram após um mês e meio. As
pessoas eram sentenciadas a dez anos de prisão e a trabalhos forçados
pelo simples fato de colherem batatas, ou até mesmo por colher espigas
de milho nos pedaços de terra privada que elas podiam gerir. Tudo tinha
de ser do governo.
Os
ativistas comunistas afirmavam que os sabotadores estavam por todos os
lados, sistematicamente retendo e escondendo comida, impedindo o
abastecimento das cidades, e desafiando as ordens de Stalin. Esses
ativistas invadiam de surpresa as casas dos camponeses e faziam uma
varredura no local em busca de alguma comida escondida. Aqueles
ativistas mais bondosos ainda deixavam algum resquício de comida para as
famílias, porém os mais cruéis saíam levando absolutamente tudo o que
encontravam.
O
resultado foi totalmente previsível: as pessoas começaram a passar
fome, em números cada vez maiores. Um camponês que não tivesse a
aparência de alguém que estava esfomeado era imediatamente considerado
suspeito pelas autoridades soviéticas de estar estocando comida. Como
relata um historiador, "Um ativista comunista, após fazer uma busca
minuciosa pela casa de um camponês que não aparentava a mesma fome dos
demais, finalmente encontrou um pequeno saco de farinha misturada com
casca de árvore e folhas. O material foi confiscado e despejado em um
lago do vilarejo."
Robert Conquest cita o testemunho de outro ativista:
Eu
ouvi as crianças... engasgando sufocadas, tossindo e gritando de dor e
de fome. Era doloroso ver e ouvir tudo aquilo. E ainda pior era
participar de tudo aquilo.... Mas eu consegui me persuadir, me convencer
e explicar a mim mesmo que aquilo era necessário. Eu não poderia
ceder; não poderia me entregar a uma compaixão debilitante ....
Estávamos efetuando nosso dever revolucionário. Estávamos obtendo
cereais para a nossa pátria socialista....
Nosso
objetivo maior era o triunfo universal do comunismo, e, em prol desse
objetivo, tudo era permissível — mentir, enganar, roubar, destruir
centenas de milhares e até mesmo milhões de pessoas...
Era
assim que eu e meus companheiros raciocinávamos, mesmo quando... eu vi o
real significado da "coletivização total" — como eles aniquilaram os
kulaks, como eles impiedosamente arrancaram as roupas dos camponeses no
inverno de 1932-33. Eu mesmo participei disso, percorrendo a zona rural,
procurando por cereais escondidos.... Junto com meus companheiros,
esvaziei as caixas e os baús onde as pessoas guardavam seus alimentos,
tampando meus ouvidos para não ouvir o choro das crianças e a lamúria
suplicante das mulheres. Eu estava convencido de que estava realizando a
grande e necessária transformação da zona rural; e que nos dias
vindouros as pessoas que viveriam ali estariam em melhor situação por
minha causa.
Na terrível primavera de 1933, vi pessoas literalmente morrendo de fome. Vi mulheres e crianças com barrigas inchadas, ficando azuis, ainda respirando mas com um olhar vago e sem vida.... Eu não perdi a minha fé. Assim como antes, eu acreditava porque eu queria acreditar.
Em
1933, Stalin estipulou uma nova meta de produção e coleta, a qual
deveria ser executada por uma Ucrânia que estava agora à beira da
mortandade em massa por causa da fome, que havia começado em março
daquele ano. Vou poupar o leitor das descrições mais gráficas do que
aconteceu a partir daqui. Mas os cadáveres estavam por todos os lados,
e o forte odor da morte pairava pesadamente sobre o ar. Casos de
insanidade, e até mesmo de canibalismo, estão bem documentados. As
diferentes famílias camponesas reagiam de maneiras distintas à medida
que lentamente iam morrendo de fome:
Em
uma choupana, era comum haver algum tipo de guerra entre a família.
Todos vigiavam estritamente todos os outros. As pessoas brigavam por
migalhas, tomando restos de comida umas das outras. A esposa se voltava
contra o marido e o marido, contra ela. A mãe odiava os filhos. Já em
outra choupana, o amor permaneceria inviolável até o último suspiro da
família. Eu conheci uma mulher que tinha quatro filhos. Ela costumava
lhes contar lendas e contos de fadas com a intenção de fazê-los esquecer
a fome. Sua própria língua mal podia se mover, mas mesmo assim ela se
esforçava para colocá-los em seus braços, ainda que ela mal tivesse
forças para levantar seus braços quando eles estavam vazios. O amor
vivia dentro dela. E as pessoas notaram que, onde havia ódio, as
pessoas morriam mais rapidamente. Entretanto, o amor não salvou
ninguém. Todo o vilarejo sucumbiu; todos juntos, sem exceção. Não
restou uma só vida.
Normalmente
é dito que o número de ucranianos mortos na fome de 1932-33 foi de
cinco milhões. De acordo com Robert Conquest, se acrescentarmos outras
catástrofes ocorridas com camponeses entre 1930 e 1937, incluindo-se aí
um enorme número de deportações de supostos "kulaks", o grande total é
elevado para entorpecentes 14,5 milhões de mortes. E, mesmo assim, se
apenas 1% dos alunos do ensino médio já tiver ouvido falar sobre esses
eventos, isso já seria um pequeno milagre.
Durante
o artigo, referi-me várias vezes a Robert Conquest, um excelente
historiador da União Soviética. Conclamo, insisto e exorto qualquer
pessoa com interesse nesses eventos a ler seu extraordinário livro The Harvest of Sorrow. A leitura flui como se fosse um romance — mas a história relatada é excessivamente real.
Thomas E. Woods Jr. é um membro sênior do Mises Institute, especialista em história americana. É o autor de nove livros, incluindo os bestsellers da lista do New York Times The Politically Incorrect Guide to American History e, mais recentemente, Meltdown: A Free-Market Look at Why the Stock Market Collapsed, the Economy Tanked, and Government Bailouts Will Make Things Worse. Dentre seus outros livros de sucesso, destacam-se Como a Igreja Católica Construiu a Civilização Ocidental (leia um capítulo aqui), 33 Questions About American History You're Not Supposed to Ask e The Church and the Market: A Catholic Defense of the Free Economy (primeiro lugar no 2006 Templeton Enterprise Awards).
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