Fernão Lara Mesquita:O Estado de São Paulo
Marcada pela ambiguidade, a cena foi uma síntese do momento brasileiro. No “banco dos réus”, o ministro Meirelles e a PEC 241, de salvação dos 22,7 milhões de desempregados, subempregados e “desativados” pela explosão do déficit que paralisou o País, constrangido a uma espécie de “autocrítica”; na “cátedra” à
volta, toda a cúpula do Judiciário, um dos grandes detonadores dessa
explosão, exigindo dele a reiteração da vassalagem ao conceito de “autonomia dos Poderes”,
versão pervertida do princípio de “independência dos Poderes” nas
democracias sem cuja retificação não será possível desapertar o garrote
do pescoço dos miseráveis do Brasil.
Foi na sexta-feira, 14, no gabinete da presidente do STF, ministra
Cármen Lúcia, e estavam lá, além da imprensa, os presidentes do TSE,
Gilmar Mendes; do STJ, Laurita Vaz; do Superior Tribunal do Trabalho,
Ives Gandra Martins Filho; do Superior Tribunal Militar, William de
Oliveira Barros; e mais a advogada-geral da União, Grace Maria Fernandes
Mendonça. Mais de um entre eles fez questão de tomar posição a favor
das reformas mas, como reagiam a um documento patrocinado pela
Procuradoria-Geral da República, pelo Tribunal de Contas da União e pelo
Ministério Público, assinado por vários juízes, apedrejando a PEC 241
como “inconstitucional” e atentatória à sua versão de “democracia”, estavam entre a cruz e a caldeira. Botando panos quentes, mas não sem, antes, reafirmar o “direito” dos privilegiados do Brasil aos privilégios que eles próprios se outorgam, inscrito na Constituição que ele está.
É um estranho interregno este que vivemos. É ilegal fazer justiça no país que a “Constituição dos Miseráveis”
criou. Tudo nele é privilégio, discriminação e mentira e todo mundo
sabe disso, mas continua sendo proibido dizê-lo, sob as pena da lei que
há, a escrita e a não escrita.
Em palestra recente a secretária do Tesouro, Ana Paula Vescovi, deu os
últimos dados conhecidos da previdência pública, ainda de 2013. São 4,2
milhões, somados os aposentados e pensionistas da União, dos Estados e
dos municípios. O déficit dessa conta correspondeu naquele ano a 3,8% do
PIB. Aplicada a porcentagem ao PIB estimado para 2016, de R$ 6,2 tri,
estaríamos falando de um rombo de R$ 237 bilhões. O déficit da conta dos
28,3 milhões de aposentados e pensionistas do resto do Brasil inteiro
somados foi de R$ 85,8 bilhões no ano passado e de estimados R$ 148,7 bi
este ano. 6,7 vezes menos gente custando 1,6 vezes mais dinheiro. Uma
coisa multiplicada pela outra e temos que nós estamos valendo, na média,
10,7 vezes menos que eles.
Como chegamos a isso?
Raul Velloso, que assessora governadores do Sul e Sudeste para medir a
catástrofe que têm nas mãos, conta que há nos Estados e na União cinco “donos do orçamento” que, invocando a tal “autonomia”, “agem como se tivessem indulgência divina para gastar”.
São eles – bingo! – o Legislativo, o Judiciário, os Tribunais de
Contas, o Ministério Público e a Defensoria Pública. Nos Estados esse
grupo come sozinho 60% da receita líquida corrente, mas não é só. Junto
com saúde e educação, que também têm um pedaço do orçamento
constitucionalmente garantido, ninguém nesses sete setores paga os
direitos previdenciários de seus empregados. Saem contratando e empurram
a conta para os tesouros estaduais, que, por sua vez, não contabilizam
essa despesa nas suas folhas de salário, o que faz da regra de ouro da
Lei de Responsabilidade Fiscal (máximo de 49% das receitas para pessoal)
letra morta. Para realmente “servir ao público”,
as migalhas e... o caríssimo dinheiro dos bancos. Assim cavado, o
déficit atuarial das previdências estaduais está hoje acumulado em R$
2,4 trilhões. Na União dá-se o mesmo: cinco “donos” mais alguns associados adicionais relativos aos “gastos sociais” levam a apropriação do orçamento a 80%.
O Estado é, porém, um péssimo distribuidor de riqueza também dentro das
suas fronteiras. Os funcionários recebem, em média, aposentadorias de R$
5.108,00, enquanto o brasileiro que pagou todas as contribuições, só R$
1.356,00. Mas também lá a grande maioria está abaixo da média. Ganham
muito, mas muito mesmo, mediante as gambiarras de sempre, um milhãozinho
de pessoas, se tanto. E quase todos, é claro, vêm das cinco corporações
+ dois “sócios” que são “donas” dos orçamentos públicos.
Nem o “teto” da PEC 241, que terá de ser alcançado esmagando a fatia “sem dono”
(ou seja, nossa) dos orçamentos, nem as alterações até aqui mencionadas
para a previdência de todos nós, conquanto também necessárias pelas
razões sociodemográficas que todo mundo aceita, serão capazes de pôr o
Brasil de volta nos trilhos sem tocar nos privilégios desse milhãozinho
de “marajás” a quem a tal “Constituição Cidadã” entregou o País bem amarrado.
A reunião acima descrita ilustra vivamente por que um governo interino
só pode ir até onde já foi na discussão desse problema. Mas não havendo
mais como estabilizar qualquer governo no poder com o Estado reduzido à
incapacidade de pagar aos seus protegidos todos, de tanto que deve a tão
poucos, um valor mais alto se alevanta. Daí estar “o impensável” acontecendo bem diante dos nossos olhos. É o PMDB que mal disfarçadamente puxa a “denúncia” da mazela mais radical do “Sistema”.
Não é mais a imprensa que trabalha para nos mostrar o que os
governantes gostariam de esconder, são eles que conspiram para levá-la a
revelar os fatos que, até aqui, pouco tem feito para expor inteiros. E
isso porque sabe que a verdade sobre os números e, principalmente, sobre
os personagens da pontinha mais dourada da “privilegiatura” da previdência pública é uma daquelas que não se suporta a si mesma. A sua mera exposição precipitará o desmoronamento do “Sistema”.
Esse Brasil das tetas desbragadas acabou. Não cabe mais em si mesmo nem
no mundo. E quem contribuir por ação ou por omissão para prolongar e
aprofundar a miséria que custa mantê-lo insepulto não vai ter lugar no
próximo que vem vindo aí.
extraídaderota2014blogspot
0 comments:
Postar um comentário