Jorge Béja
Dilma pede que o STF anule o processo de impeachment e a ela devolva o cargo de presidente da República. A peça, também chamada de Petição Inicial, tem 493 páginas, cansativas e enfadonhas de serem lidas. Mesmo assim comecei a leitura. Mas ao chegar nas páginas 27/28 tive um susto. Um baita susto. E por isso parei, horrorizado com o que li.
PEÇA MAIS IMPORTANTE – É mesmo verdade que a petição inicial é a peça mais importante dos processos judiciais. Exige do advogado talento e arte na sua elaboração. É a peça que indica o rumo que o processo vai tomar. E da narrativa dos fatos e do Direito nela expostos pode-se até mesmo aferir, ainda que tenuemente, sobre a possibilidade, ou não, da procedência do pedido. Sua redação há de ser elegante. E por mais erudito que seja o advogado dela subscritor, não é recomendável demonstrar erudição.
Fortes mesmo são a objetividade, a clareza, a compreensão, a simplicidade, a verdade, a elegância e o enquadramento dos fatos ao Direito postulado. Ainda que se trate de Mandado de Segurança – remédio jurídico que protege Direito líquido e certo não amparado por Habeas-Corpus – e que exige prova pré-constituída e depois que a parte contrária se defende também não admite réplica da parte impetrante, muito menos emenda, conserto ou retificação, ainda assim a petição inicial não precisa conter 493 páginas. Mesmo porque o Direito brasileiro adota dois princípios do Direito Romano: “Jura Novit Curia” (O juiz conhece o Direito) e este outro “Narrat Mihi Facto Dabo Tibi Ius” (Me narre o fato que te darei o Direito). Mas raramente isso acontece.
PETIÇÕES LONGAS – O que se vê na prática são petições longas, com inúmeras e desnecessárias citações e transcrições doutrinárias e jurisprudenciais, quando seriam suficientes, no máximo duas ou três. Os magistrados não gostam de petições iniciais longas, com requintes e com riqueza de adornos. Convenhamos que uma petição de Mandado de Segurança com 493 páginas é um exagero.
Mas no caso do Mandado de Segurança que Dilma deu entrada no STF, para anular o processo de impeachment e voltar à presidência da República, é excepcionalmente compreensível uma petição inicial pouco mais extensa. O advogado José Eduardo Cardozo é talentoso e erudito. Ele sabe falar bem e escreve melhor ainda. E o tema comporta a mais completa e abrangente exposição, de fatos e de Direito.
A leitura que comecei a fazer parou naquelas páginas (27/28) que integram o título “Dos fatos que antecederam a abertura do processo de impeachment“. O doutor José Eduardo Cardozo, com detalhes, começou a relatar e relembrar tudo o que aconteceu, antes e depois da abertura do processo de impeachment e que é do conhecimento de todos, porque amplamente divulgado pelos meios de comunicação. Cada linha, cada parágrafo e cada página que o doutor Cardozo escreveu e eu vinha lendo nada trazia de novidade. Todos soubemos e vimos pela televisão.
PERPLEXIDADE – Quando a leitura chegou nas páginas 27/28 e mais precisamente nos itens 86 e 87, parei. Fiquei perplexo. Permaneci imóvel, com minh’alma abatida, como registra o poeta Corneille, no clássico “O Cid”. E creio que qualquer cidadão de bem sentiria o que senti e os ministros do STF – mormente Teori Zavaschi, relator do Mandado de Segurança – também sentirão. Tem lá uma revelação que, a ser verdadeira (e advogado não pode mentir), é atitude criminosa contra a República, contra a Democracia, contra o Estado Brasileiro e seu povo. É de muito maior gravidade do que o “crime” de responsabilidade contábil-orçamentária que afastou Dilma da presidência.
A revelação é de José Eduardo Cardozo. Consta no item 86 da página 27, com letras impressas em negrito e texto sublinhado.
CUNHA DEU ULTIMATO A DILMA – Referindo-se ao propósito do então presidente da Câmara, deputado Eduardo Cunha, escreveu Cardozo:
“Tratava-se de uma clara ameaça. Se no prazo de trinta dias a Sra. Presidenta da República não tomasse medidas impedindo o prosseguimento das investigações realizadas no âmbito da “Operação Lava Jato”, ele poderia abrir um processo de impeachment”.
Cardoso referia-se, claramente, a um ultimato-barganha da parte de Eduardo Cunha: se Dilma interviesse para impedir o prosseguimento das investigações da Lava Jato, Cunha não receberia a denúncia que Hélio Bicudo, Miguel Reale Júnior e Janaína Conceição Paschoal apresentaram à presidência da Câmara. Caso contrário, a denúncia seria recebida. Neste ponto da leitura dei uma parada, respirei profundo e pensei comigo mesmo: Que desaforo! Que audácia! Que petulância! Quanto descaramento!
Um presidente da Câmara dos Deputados colocar o presidente da República contra a parede: ou tome medidas para impedir que a Polícia e a Justiça, ambas federais, prossigam com as investigações da Lava Jato (que chegariam até ele, Eduardo Cunha) ou a denúncia contra a presidente seria recebida e começaria o processo do seu afastamento da presidência. Quanta patifaria!
E DILMA NÃO FEZ NADA… – Nesta pausa que dei à leitura fiquei imaginando que atitude a presidente da República teria tomado (ou deveria ter tomado) diante de tão grave ameaça. Isto porque o caso exigia que a presidente imediatamente colhesse provas e oficiasse ao Procurador-Geral da República noticiando a ameaça, a fim de possibilitar que o STF instaurasse inquérito/investigação contra o presidente da Câmara. Era o mínimo que se esperava. Era o mínimo que Dilma deveria fazer e não se tem notícia de que fez. Quedou-se inerte. Acovardou-se.
Mas não ficou só nisso. Fala-se em inércia, em acovardamento, porque o pior, e muito pior que isso, Cardozo escreveu no item seguinte, o 87 (página 28). Sem o menor senso crítico, sem o mínimo constrangimento – ou com desassombro e garbo –mas sem medir as consequências, o advogado noticia a reação da presidente, assim narrando textualmente:
“Como não se dispusesse a Sra. Presidente da República a obstruir as investigações, o Sr. Eduardo Cunha deflagrou um claro processo de desestabilização do governo, em conluio tático com forças oposicionistas“.
MEU DEUS, O QUE É ISTO? – Onde estávamos? Onde estamos? Quer dizer, então, que a presidente da República só não obstruiu as investigações da Lava Jato porque Dilma não se dispôs a tanto? Isto quer dizer que Dilma poderia se dispor a tomar a medida de “obstruir” as investigações? A questão girava, então, em dispor ou não dispor? Topar ou não topar fazer? E tudo isso referente a um plano diabólico.
Dispor é predispor, é se colocar de acordo, é usar livremente a vontade, é decidir, preparar-se e dedicar-se (Aurélio, Dicionário da Língua Portuguesa, 2ª edição, 2008).
Esta afirmação de José Eduardo Cardozo mostra um submundo que o povo brasileiro não imaginava que pudesse permear a relação do Poder Executivo com o Poder Judiciário, com o Ministério Público Federal, com a Procuradoria-Geral da República e com a Polícia Federal. Uma relação promíscua, não democrática, não republicana e, acima de tudo, criminosa. E com tanta aparência de normalidade que foi tentada, não foi repudiada, nem muito menos levada ao conhecimento do Procurador-Geral da República.
CRIMES PRESIDENCIAIS – Os atos do presidente da República que atentem contra o livre exercício do Poder Judiciário e do Ministério Público são crimes presidenciais conforme dispõe o artigo 85 da Constituição Federal. E mais: muito embora o Código Penal não preveja o crime de “obstrução da justiça”, o artigo 2º da Lei 12.850 de 2013 é clara ao dispor que “incorre na pena de reclusão de 3 a 8 anos e multa quem impede, ou de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa”.
E as investigações da Lava Jato, que segundo Cardozo o então presidente da Câmara cobrou de Dilma fossem estancadas, têm como alvo gigantesca organização criminosa que agiu contra a Petrobras.
AGORA É TARDE – O ex-ministro da Justiça José Eduardo Cardozo não pode mais consertar ou riscar o que escreveu na petição do Mandado de Segurança que impetrou no STF em favor de sua constituinte, a ex-presidente Dilma Rousseff. Resta-lhe assumir a responsabilidade pelo que noticiou na petição.
Ou teria sido outro descuido, outra desatenção de Cardozo, do tipo daquela quando, ao listar uma série de juristas que assinaram pareceres em defesa de Dilma, citou um tal “Tomás Turbando Bustamante”, como consta nas notas taquigráficas da sessão da Comissão Especial do Senado presidida pelo senador Raimundo Lira?
EXTRAÍDADETRIBUNADAINTERNET
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