por Fernando Gabeira O Globo
O carnaval é o tempo da alegria, em que as pessoas se irmanam no riso.
Segundo o teórico russo Mikhail Bakhtin, a alegria popular é uma
contrapartida à seriedade e chatice dos ritos oficiais. Acontece entre
nós uma certa carnavalização da política. Algo diferente de se fazerem
milhares de máscaras do japonês da Federal e sair cantando: vem pra cá,
você ganhou uma viagem ao Paraná. Isso é a política no carnaval. Os
discursos de Dilma e Lula são o carnaval na política. Ela conseguiu
emplacar dois sucessos em 2015: “Saudação à mandioca” e “Armazenando o
vento”.
Na primeira, Dilma pré-colombiana se entusiasmou com nossas origens
indígenas. Na segunda, apenas mencionou um processo real mas que ainda
não está consolidado: armazenar o vento nas rochas, como um ar
comprimido. O sucesso da “Saudação à mandioca” é o entusiasmo de Dilma
que se derrama para o milho. No “Armazenando o vento”, o refrão “daqui
pra lá, de lá pra cá” transmite ação, é bastante expressivo para
descrever o vento.
Deixando sua fase mais popular, Dilma ficou zangada com as previsões do
FMI. “Estou estarrecida”, confessou. Como se nunca tivesse lido uma
previsão que falasse do buraco em que caímos, até 2018, no mínimo. Mas
estava reservada ao criador da criatura o papel de vocalista do bloco.
Lula disse aos seus blogueiros de estimação que não existe no Brasil
alma viva mais honesta do que ele. Com todas as reservas sobre a
existência da alma, e dúvidas sobre se a de Lula está realmente viva ou é
apenas um fantasma fugindo da polícia, esta frase abriu o carnaval de
2016.
Lula disse isso num momento em que está acossado por várias
investigações, medida provisória vendida, compra de caças, triplex,
sítio, enfim tudo o que aparece nas notícias e mais alguma coisa
escondida nos inquéritos ou no fundo da garganta de um potencial delator
premiado. Ao se proclamar a mais honesta alma viva do Brasil, Lula
optou por um passe de mágica que deve ter maravilhado seus intérpretes
oficiais, os blogueiros que levam grana do governo. É como se o
protagonista, completamente cercado pela polícia, ficasse invisível, ou
voasse como um herói de história em quadrinho: shazam.
Ele decidiu ocupar um lugar no Olimpo. O interessante é que, ao
contrário dos deuses que tudo sabem, Lula nunca sabe de nada. É uma
figura mitológica que derrota o amante traído na disputa por ser o
último a saber. Bakhtin tem uma outra visão da etimologia do carnaval.
Ao contrário dos que dizem que é a festa da carne, amparando-se na
palavra latina, Bahktin mostra que a raiz germânica indica para a
expressão: procissão dos deuses mortos.
O fato de os dirigentes serem carnavalescos não intencionais não teria o
poder de atenuar seus erros com um pouco de humor? Sei que muitos vão
escrever: onde está a indignação diante de tudo que roubaram? Não há
espaço para rir deles. Concordo com a indignação com a roubalheira
porque ela representa sofrimento, e no caso da saúde, morte precoce para
o povo brasileiro. O fato é que eles estão aí. Sérios ou engraçados,
assaltariam o país de qualquer maneira. Um pouco de humor não atrapalha.
Como dizia Vinicius de Moraes, a gente trabalha o ano inteiro, por um
momento de sonho, para fazer a fantasia de rei, ou de pirata ou da
jardineira.
O sonho de carnaval, na canção de Vinicius, acaba na quarta-feira. Mas
nesse ponto concordo com Bakhtin: o carnaval é mais longo. Aí está o nó.
O Brasil oficial vive o sonho de uma potência emergente, incessante
redistribuição de renda, orgulha-se de sair no bloco bolivariano e
rejeita quem insiste que já é Quarta-feira de Cinzas. No entanto, é um
país decadente, que puxa para baixo a própria economia global, e está
infestado de mosquitos do Aedes aegypti real ao tsé-tsé simbólico.
Aqueles blocos que saem depois do carnaval são animados, ganham alguns
minutos na TV, mas sabem que são efêmeros.
Os blocos oficiais parecem não saber. Não adianta gritar que o carnaval
acabou. Eles não ouvem. Se ouvirem, daqui a alguns meses, vão responder
como Dilma ao documento do FMI: “estou estarrecida”. Estamos
estarrecidos há muito tempo. E não apenas com a situação econômica, mas
com a gravidade da crise, com a perda de oportunidades nacionais, com o
estado da imagem do Brasil no mundo, enfim essa longa lista de choros.
O carnaval demarca o tempo da alegria, um prazer com tempo para acabar, a
finitude como a qualidade do próprio prazer. O bloco do governo não
soube brincar. Confundiu festa e trabalho, realidade e fantasia, partido
e país, dinheiro público e patrimônio. É um dos blocos que o carnaval
popular rejeita. De um modo geral, são os que saem fantasiadas da
cadeia, na Quarta-feira de Cinzas.
Mesmo na política carnavalizada, no entanto, nem tudo acaba na
quarta-feira. Um japonês sem máscara vai bater o ponto na Federal de
Curitiba, os processos correm, as línguas desatam, daqui a pouco, quem
sabe, é domingo de Aleluia.
extraídaderota2014blogspot
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