Samantha Lima Época
O economista José Márcio Camargo, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e economista da Opus Gestão de Recursos, é um dos principais pesquisadores brasileiros de economia do trabalho, pobreza e desigualdade. Ele lançou, no início dos anos 1990, em artigos e em reuniões no PT, a ideia de criar um programa de transferência de renda condicionado à manutenção das crianças na escola. A proposta foi implantada inicialmente no governo petista do Distrito Federal e na prefeitura tucana de Campinas, em São Paulo. Depois, foi adotada pelos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, já como Bolsa Família.
O olhar treinado para a dinâmica da pobreza no Brasil deixa Camargo especialmente assustado com a crise econômica. Ele acredita que só a partir de 2022 o Brasil deverá retornar ao nível de bem-estar social registrado na década passada e que, entre os diversos males econômicos atuais, a inflação é o pior – especialmente para os mais pobres.
Em 2015, o desemprego aumentou e a renda caiu em velocidades que não eram vistas havia mais de uma década. Os indicadores vão piorar mais?
A desigualdade certamente vai piorar. A pobreza já está aumentando e vai depender do que o governo fizer com a política de transferência de renda. A Bolsa Família não foi reajustada nos últimos 20 meses. Significa uma perda substancial de poder dessas pessoas. O desemprego está piorando muito rápido e vai aumentar. Isso significa menos demanda e menos oferta. Vamos ter queda da renda real. A crise está se aprofundando.
Qual será o impacto social disso?
O mercado de trabalho voltou a 2008. Em um ano, perdemos sete anos de avanço. Mais um ano como esse, e voltamos a 2000. Se tivermos um 2016 tão difícil como 2015, a situação se torna muito mais grave. Viemos de um período longo de crescimento e aumento de renda. As pessoas conseguiam poupar, comprar bens duráveis. Com a crise e o desemprego, no primeiro ano você vende bens e desfaz a poupança. No segundo ano, você diminui o padrão de vida. Então, esse segundo ano de recessão, se for, vai ser mais doloroso. Para piorar, as políticas de bem-estar direto da população – educação, saúde e segurança – são administradas pelos Estados. E os Estados estão falidos. Tudo isso piorou e vai piorar mais.
Quanto tempo levaremos para voltar ao patamar pré-crise?
Camargo – Dificilmente vamos conseguir, depois do processo, recuperar o que perdemos em menos de cinco, seis anos. E só vamos parar de piorar em 2017, 2018. É uma década para retomar, uma perda enorme. É muita coisa errada que tem de mudar. O Brasil havia conseguido fazer uma série de reformas fundamentais para gerar esses ganhos de bem-estar. Abriu a economia, aumentou a produtividade, fez ajuste fiscal. Diminuiu a pobreza e a desigualdade. Fez reformas de previdência social, três reformas de mercado de trabalho, fez reforma de crédito. Poucos países fizeram isso pacificamente. Foi uma revolução. Agora, em cinco ou seis anos, a gente fez a contrarrevolução. Foi tudo corroído. Voltamos à década de 1980. Vamos ter de refazer esses 15 anos.
Como o senhor avalia o fim de 2015 e o início de 2016?
Camargo – O aumento do emprego, que geralmente ocorre no fim do ano, foi muito abaixo do que vinha acontecendo anualmente. E o mais grave: em geral, no começo do ano, a taxa de desemprego aumenta. Pela Pnad Contínua (indicador de emprego mais abrangente, medido em todo o país), o desemprego chegou a 8,9%. Deveremos passar para dois dígitos na próxima medição.
A crise vem afetando de formas diferentes os diversos segmentos da sociedade?
A renda do trabalhador na região metropolitana cai mais rapidamente que nas cidades médias. E a pobreza já é mais concentrada nas regiões metropolitanas. Desconfio que a crise na indústria e na construção civil, mais presentes em grandes centros, contribua com isso.
Com a crise, há risco de convulsão social? E de aumento da violência?
Ao contrário do que se pensa, olhando pesquisas em todo o mundo, não existe correlação entre desemprego, pobreza e violência. O que parece ter relação é a educação. Quanto menos educação, mais violência. Já os grandes momentos de convulsão social não são de pobreza e desigualdade. No Brasil, em 2013 (quando houve manifestações violentas nas principais cidades), a economia ainda crescia. Esses movimentos exigem certa capacidade de organização, e a sociedade tem poucos instrumentos para gerar essa capacidade hoje. A internet ajuda, mas essas manifestações são de grupos de renda relativamente alta, menos prejudicados pela recessão. Os mais pobres usam a rede social para lazer. Pode ser que isso mude, mas não acho provável.
Esta crise tem algo em comum com as anteriores?
Pouca coisa. A de 2001 foi gerada pela falta de oferta de energia elétrica, mas se resolveu com medidas administrativas, construíram-se usinas termelétricas. Em 2002, foi uma crise de confiança. Quando Lula mostrou que preservaria os fundamentos econômicos, rapidamente recuperou-se a credibilidade. Em 2009, foi uma crise externa, violenta, mas a China reagiu muito agressivamente, aumentando crédito e demanda. Vínhamos de um momento bom, de 1999 a 2006, com superavits importantes, inflação em queda. Havia, então, espaço para políticas importantes para a economia recuperar rapidamente. Hoje, temos deficit fiscal de 9% do PIB. Ou seja, não tem espaço para aumentar os gastos do governo, para baixar os juros, não dá para fazer nada. Há também um problema de credibilidade monumental. Ninguém sabe para onde vai este governo, o que paralisa todo mundo. Ninguém investe, ninguém consome, ninguém emprega. Isso vai gerar mais recessão.
Temos inflação alta, juros altos e desemprego acelerando. Qual deles é pior para os mais pobres?
A inflação alta. No desemprego, o pobre faz bico para não morrer de fome. A inflação corrói a renda do cara independentemente do que ele fizer. E o desemprego só afeta o desempregado. A inflação afeta todo mundo.
Como o senhor avalia a política de juros e inflação deste governo?
O descaso em relação à meta de inflação é a pior política para os pobres. A perda de renda real nos últimos anos é monumental. Em 2015, a inflação dos pobres foi maior porque grande parte dela veio dos alimentos, que comprometem uma fatia maior da renda deles do que dos ricos. Uma razão foi a enorme desvalorização do real diante do dólar, consequência da falta de confiança no governo. O preço de alimentos importados, como trigo, sobe.
O que o senhor achou da decisão do Banco Central, na última reunião, de manter a taxa básica de juros?
O problema não é não aumentar os juros, mas a forma como foi feito. O presidente do BC (Alexandre Tombini) indicou, na véspera da decisão, uma mudança de posição supostamente por uma previsão do FMI. Mas essa previsão já era a do mercado. Os agentes econômicos pensam: “Epa, não dá para confiar nesse cara”. A moderna teoria sobre atuação do BC dá ênfase enorme à comunicação. Diz que política monetária é 80% comunicar corretamente. O resto é subir ou baixar juros.
Dá para voltar a crescer em 2017?
Não teremos uma recessão tão grande como tivemos no ano passado, mas 2017 vai ser um ano, na melhor das hipóteses, de estagnação. Este governo dá todos os sinais de que não acredita no mercado. Só confia se ficar no controle. Mas o cara que vai construir estrada é empresa privada. O governo tem de mudar a forma como trabalha.
O Executivo ainda pode fazer algo para remediar os danos da crise para as classes C, D e E?
Precisa saber o que se quer preservar. O Bolsa Família errou ao tirar a ênfase na educação e dar foco só à pobreza. Assim como a ideia de transferir renda condicionada a educação, também foi minha a ideia de transferir sem exigir essa contrapartida. Essa foi uma ideia ruim, admito, ainda que previsse contrapartida de serviço para a sociedade. Deveriam voltar a separar o Bolsa Escola, com mais ênfase na educação, e criar condicionantes no Bolsa Família. O governo precisa rever os salários mais altos de servidores federais, para o Estado gastar menos. O problema do país é fiscal. Se ele não for resolvido, não chegaremos a lugar nenhum.
EXTRAÍDADETRIBUNADAINTERNET
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