Jornalista Andrade Junior

domingo, 28 de fevereiro de 2016

QUALIDADE, EXCELÊNCIA E SANTIDADE

por Percival Puggina

A pergunta que me ocorre, nesse cenário em que uma luzidia presunção coletiva projeta as sombras de profundas insatisfações pessoais, é a seguinte: por que tantos e tantos renunciam à santidade, relegando-a ao patamar das coisas inatingíveis? Se somos tão aperfeiçoáveis em tudo, por que abdicamos à busca do Bem e da perfeição moral e espiritual? Quando se trata dessas dimensões do ser, apesar de sermos cobradores permanentes da perfeição alheia, costumamos afirmar que “somos como somos” e que “devemos aceitar nossa imperfeição”.
 Vivemos num cenário de generalizada presunção. Ordenam-se, para o compor, vários fatores: as eficientes técnicas de marketing - demonstrando que a exaltação da qualidade de produtos e serviços gera dividendos empresariais - acabam induzindo todo mundo a fazer a mesma coisa; a velocíssima multiplicação das informações e do conhecimento que, saindo da escala humana e entregue ao ritmo de máquinas sofisticadas, nos acena com a possibilidade de sermos usufrutuários de todo esse manancial de dados; os métodos de auto-ajuda, que convertem em sucesso editorial qualquer livro cujo título proponha transformar em sofisticada porcelana a argila vulgar de que fomos feitos; a evidente qualificação dos instrumentos e da possibilidade de formação necessários para que se possa fazer de modo certo o que se tenha para fazer; a vertiginosa evolução da tecnologia de ponta e da quantidade de pontas da tecnologia, produzindo um crescente otimismo quanto à excelência das futuras condições da vida humana.
Em outras palavras, a humanidade se considera, como mínimo, o máximo. E não são poucos aqueles que, comparando o que o homem tem conseguido fazer com aquilo que Deus deixou feito, chegam à conclusão de que caminhamos para o empate técnico e já confundem o homem com o próprio Deus. É verdade que resta sempre um resíduo de limite pois cada conhecimento adquirido descortina vários mistérios novos, de modo que cada explicação propõe uma série de perguntas adicionais; e é verdade, ainda mais amarga, que o homem não conseguiu se desvencilhar da fatalidade da morte (embora, ainda neste caso, muitos creiam, como diagnosticou alguém, que nosso contemporâneo se vê como imortal, considerando apenas uma questão de tempo dar-se solução aos injustificáveis embaraços dos velórios).
Mas entre o orgulhoso devaneio de alguns, o pessimismo de outros para os quais tudo é ilusão (sendo o homem uma toupeira incapaz de reconhecer qualquer verdade) e a objetiva percepção da realidade, resta uma sólida evidência: é quase inesgotável nossa capacidade de aprimorar aquilo que fazemos. Tal observação se relaciona, numa perspectiva cristã, com a própria natureza humana - imperfeita mas aperfeiçoável.
Nascemos com o pecado original, desdentados e com um sorriso de insuperável inocência, usamos fraldas e engatinhamos lenta e desajeitadamente para superar as pequenas distâncias que nos separam de nossos objetivos. Em pouco tempo estamos correndo, nosso sorriso exibe dentes, vamos dominando os esfíncteres e perdendo a ingenuidade. Um pouco mais e nos tornamos homens do mundo, freqüentamos o dentista, nossos objetivos se afastam de nós, andamos de avião e sorrimos por conveniência sensual, social ou comercial.
Somos imperfeitos, sim, mas somos aperfeiçoáveis. Toda nossa “evolução” se faz perseguindo um nível de perfeição no qual se contêm eficiência, eficácia, qualidade do que produzimos, elevado grau de formação e informação e, em muitos casos, uma busca por beleza plástica que passa pelo espelho e se estende nas circunstâncias materiais de que nos rodeamos. À medida em que percebemos e compreendemos as possibilidades materiais e de gozo sensorial que costumam andar associados ao aperfeiçoamento e à busca da qualidade, passamos a nos conduzir pela vida como adolescentes que descobrem a relação existente entre o tempo dedicado à vaidade e o impacto produzido sobre o sexo oposto.
De uns tempos para cá, como resultado da abertura das economias nacionais, abandonado o modelo da auto-suficiência, as prateleiras das livrarias se encheram de livros sobre Qualidade Total e Excelência Empresarial. Investimentos realizados para adequar empresas a exigentes padrões de qualidade vêm se revelando altamente rentáveis. Governos se aplicam em estimular, nesse sentido, o setor privado, e as entidades empresariais se jogam na tarefa, muito mais difícil, de obter do setor público um correspondente empenho em se qualificar a si mesmo. A busca de aprimoramento afeta, assim, até mesmo os governos e a administração pública o que, convenhamos, é bem mais do que estamos habituados a conceber como conduta setorial.
O conteúdo desses manuais endereçados ao setor privado tem alguns denominadores comuns. Entre eles a descoberta de algo que o pensamento cristão - sob outro título e com outras motivações, vem ensinando há séculos: “Assim como a parte e o todo são em certo modo a mesma coisa, assim o que pertence ao todo pertence de alguma sorte a cada parte” (Santo Tomás, Sum. Teol. II-II, q. 61 a.1 ad 2). Donde se conclui que a qualidade que pertença ao todo de uma empresa ou organização se faz da qualidade das pessoas que a compõem; em nenhuma organização humana haverá qualidade que não esteja fundada na qualificação de seus membros, em todos os seus níveis. Eureka! A moderna administração descobriu, na porta do estabelecimento e na gaveta do caixa, o valor da pessoa humana. Terá aberto a janela para vislumbrar sua verdadeira dignidade?
A situação que estou descrevendo pode ser percebida em toda parte. Não tem outra explicação a corrida aos cursos de especialização, o grande número de trabalhadores que enfrentam, à noite, longas jornadas de estudo, os cuidados com a alimentação, o êxito comercial das academias de ginástica, a prosperidade dos cirurgiões plásticos e o sucesso de qualquer produto anunciado como capaz de devolver o topete aos calvos. Todos querem “fazer o melhor” de si mesmos.
Ora, esse extraordinário empenho coletivo por “qualidade” e “excelência” parece apontar para um inusitado ciclo histórico de aperfeiçoamento humano. Será mesmo? Estamos, de fato, nos tornando melhores a cada dia? Atingimos elevados padrões de conduta? As pessoas não costumam dar respostas afirmativas ou expressar otimismo quando tais indagações lhes são formuladas. Ao contrário, o que se ouve são manifestações de insatisfação com os rumos da sociedade e de sua instituição fundadora - a família - , empregando-se nessas avaliações palavras e expressões como “desorientação”, “perda dos valores de referência”, “egoísmo”, “individualismo”, “loucura generalizada”, “falta noção de limites”, “violência” e assim por diante. Enquanto isso, nos consultórios dos terapeutas da mente humana o extravagante se converte em rotina. E num mundo de sofisticadas satisfações a felicidade é um devaneio buscado em várias e rentáveis formas químicas de agressão ao sistema nervoso central.
A pergunta que me ocorre, nesse cenário em que uma luzidia presunção coletiva projeta as sombras de profundas insatisfações pessoais, é a seguinte: por que tantos e tantos renunciam à santidade, relegando-a ao patamar das coisas inatingíveis? Se somos tão aperfeiçoáveis em tudo, por que abdicamos à busca do Bem e da perfeição moral e espiritual? Quando se trata dessas dimensões do ser, apesar de sermos cobradores permanentes da perfeição alheia, costumamos afirmar que “somos como somos” e que “devemos aceitar nossa imperfeição”.
A propósito - e poderia dizer paradoxalmente - ainda não encontrei alguém que proclamasse, a respeito de seu trabalho e de sua atividade profissional, coisa do tipo “eu sou incapaz”, “só consigo fazer malfeitas as tarefas que me são atribuídas”, ou “não me peçam nada melhor porque só sei fazer, mesmo, essa droga que aí está”. Ora, se como regra geral somos caprichosos, se nos empenhamos na qualidade do que materialmente fazemos, se nos ocupamos em projetos de Qualidade Total e de Excelência Empresarial, donde vem esse abandono coletivo da perfeição pessoal e da santidade?
Nada contra a qualificação técnica, o zelo pelo que seja material e o empenho em produzir bens e serviços de elevado padrão (aliás, tudo a favor), pois há nisso um conteúdo ético importante que se expressa no respeito ao próximo (consumidor, cliente, colaborador, etc). Mas não me parece coerente que, no contrapelo, as pessoas se satisfaçam com muito menos do que isso quando se trata de valores e das virtudes que os exaltam. Principalmente porque não há outro caminho para a felicidade de todos e de cada um. Deveria ser - e é! - tão possível buscar a santidade quanto perseguir a qualidade em tudo que materialmente fazemos. A santidade é a ISO 9000 da alma humana, certificada, não por alguma instituição externa mas por uma profunda e justificada felicidade interior.
Suponho que a estas alturas o leitor atento deve estar-se indagando sobre as razões da contradição cujas evidências aponto. Julgo que elas possam ser assim resumidas: a) sociedade contemporânea acentuou e agravou a milenar confusão que o agir humano tende a estabelecer entre satisfação e felicidade; e b) a Igreja Católica parece, a muitos, identificar santidade com “privação”, “mortificação”, “sacrifício”, “penitência” e outros desprazeres que a natureza humana tende a repelir veementemente.
Quanto ao primeiro item recomendo a leitura da excelente obra de Paul Poupard, “Felicidade e Fé Cristã”, em boa hora editado pelo Instituto de Desenvolvimento Cultural. Há uma estreita relação entre os “goodfinders” de quem fala o autor (pessoas capazes de encontrar o bem noutras pessoas e situações da vida) e aqueles a quem eu, aventurando-me a um trocadilho em idioma estrangeiro, chamaria “godfinders” (pessoas pertinazes em buscar o Bem). Essa busca habitual e firme do Bem - que o Catecismo da Igreja Católica identifica como característica fundamental das virtudes humanas - é condição inafastável da felicidade e da santidade. E não é por coincidência! Fomos criados por Deus para as duas coisas, sendo impossível conceber, no Plano de Deus, uma Criação para a infelicidade e para o vício, ou que nela se possa encontrar a felicidade no vício ou, ainda, que nela coincidam a infelicidade e a virtude.
Tenho absoluta certeza de que essas últimas afirmações fazem absoluto sentido para qualquer leitor bem boa vontade. Como resulta difícil, mesmo assim, acionar os mecanismos internos que nos poderiam levar ao Reino “que já está entre nós”, desassociando felicidade de satisfação e compreendendo que a parafernália de confortos e prazeres de que nos podemos cercar são apenas “coisas boas” mas o Bem está noutra parte! Obviamente não basta entender que satisfação é o estado de espírito de quem encontrou ou usufruiu de alguma “coisa boa” (agradável aos sentidos) e que felicidade é o estado de espírito de quem encontrou o Bem; assim como não basta saber que nem tudo que é bom faz bem para que as pessoas passem, prudentemente, a evitar os males contidos em certos bens e a desfrutar com temperança dos prazeres da vida.






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