Publicado no Estadão Fernando Gabeira
Em algum momento da semana, 2016 deve ter
começado. Tempo de lembrar que o governo não só está em decomposição,
mas enfrenta um desafio, com alguns contornos desconhecidos, que seria
temível mesmo para um presidente popular: o zika vírus.
Dilma foi à TV falar exclusivamente dele, na
esperança de construir uma unidade nacional e escapar da pressão que os
escândalos potencializaram. Por enquanto, o mosquito não nos une, porque
mesmo na luta contra ele falta credibilidade. Como achar que Dilma está
à altura do momento, se ela ainda se dedica a achar um ministro da
Saúde no PMDB? Uma proposta séria, de início, mandaria o PMDB às favas e
apresentaria ao país um ministro independente de partidos para,
simultaneamente, tocar nossa combalida estrutura de saúde, prepará-la
para a epidemia e articular apoio internacional, pois dele também vamos
precisar.
Pelo menos, Dilma conseguiu mandar o
antiamericanismo às favas e discutir com Obama um esforço conjunto para
produzir a vacina contra o zika. Mais célere, o presidente dos EUA já
pediu uma verba de US$ 1,8 bilhão, parte para a pesquisa, parte para
socorrer os países mais atingidos, como é o caso do Brasil.
Ela pedalou na folga de carnaval e certamente
se divertiu com a imprensa voltada para temas mais amenos – quem beijou
quem nos camarotes, essa festa maravilhosa, etc. Mas a realidade está
comendo por baixo.
Passei o carnaval visitando algumas das 55
cidades do Ceará onde não houve carnaval por causa da crise, do zika e
da seca. Algumas, como Acopiara, apenas por causa da seca, pois não há
água parada nem água correndo para o Aedes aegypti se reproduzir com facilidade. Em Ribeirão Preto (SP) só num dia foram atendidas 450 pessoas com sintomas de dengue ou zika.
Do lado da ciência, as notícias são
preocupantes: o zika pode ser transmitido pela urina ou saliva,
constataram os pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz; o zika pode se
propagar cinco vezes mais rápido que a dengue, afirma outra pesquisa.
Uma revista estrangeira disse que os
brasileiros festejam diante do abismo. Diante do abismo estamos todos,
mas nem todos dançaram no carnaval.
No mundo do marketing, as coisas resolvem-se com um discurso na TV. Dizem os pesquisadores que o Aedes transmite
o zika pela saliva e que ela contém ainda substâncias anestésicas: a
picada é indolor. Discursos podem ser a saliva que esconde a dor da
picada. Mas não nos protegem do vírus.
Não desejo que o mosquito derrube Dilma,
muito menos que a segure. Sinto falta de uma unidade nacional e, ao
mesmo tempo, não vejo no governo capacidade para conduzi-la. O desafio é
tão grande que talvez o país tenha de produzir essa unidade fora do
governo, a partir de um núcleo de cientistas, comunicadores, enfim, de
todos os que possam contribuir para combater o vírus.
O presidente do Quênia disse que não mandaria
os atletas paras a Olimpíada enquanto o Brasil não mostrar que pode
deter o avanço da doença. Quanto ao Quênia, é irretocável sua afirmação.
Quanto ao Brasil, é preciso esclarecer que o zika não é um problema só
do país, mas também do mundo interligado como nunca pela globalização. O
vírus possivelmente chegou aqui numa regata que envolveu atletas da
Polinésia. No intenso intercâmbio moderno, ele já apareceu nos EUA, na
Itália e a suspeita é de que, originalmente, tenha partido de Uganda
para a Polinésia Francesa. A própria ONU, ao declarar emergência
internacional, colocou o problema na sua real dimensão.
Precisamos do mundo. E o mundo também precisa
de nós. Além do esforço da vacina, um campo que merece ajuda
internacional é o da coleta e processamento das informações. Já temos
uma dívida com a história da descoberta do vírus zika e da sua relação
com a microcefalia. O New York Times contou
parte dessa história: as reações e a perplexidade dos médicos ao
observaram um crescimento espantoso de bebês com o problema. Mas não é
na história que reside a urgência, e sim no conhecimento das várias
pesquisas, dos relatos de cada cidade. Como ter acesso aos dados, como
acompanhar a evolução de todas as crianças atingidas? Claro que a
palavra decisiva virá da ciência. Mas a tecnologia da informação pode
ser um auxiliar valioso dos próprios cientistas.
Se não é possível unidade com um governo
mistificador, em alguns casos será preciso dialogar, sem que isso
represente qualquer atenuante para os crimes de corrupção. Quando os
chineses disseram que os anos interessantes equivaliam aos anos
terríveis, pontuados de tragédias, ainda não conheciam o PT. Todos os
que se dedicam a nos chamar de velhos, reacionários, vendidos ou
alugados deveriam dedicar uma parte do seu tempo a examinar os anos
interessantes que nos propiciaram. E, se houver tempo, contemplar o
interessante de sua própria situação: acuados pela polícia, rejeitados
pela maioria da população, no auge de uma grave crise econômica, um
mosquito pousa na sua mesa e, com ele, uma epidemia que preocupa a
humanidade.
Não quero nem ver o estado em que vão sair
dessa. A ideia de chamar o marqueteiro é só um reflexo condicionado
daqueles generais que acham que a próxima batalha é igual à anterior. Se
as coisas evoluem da forma sinistra que parecem tomar, o governo poderá
ter saudade da oposição e achar que os tucanos são rapazes até
bem-intencionados.
Os casos da doença de Guillain-Barré em
portadores do vírus zika, no Rio, são preocupantes. Os médicos não estão
preparados para o diagnóstico. Uma paciente viajou por três cidades
para encontrar um leito de hospital em Petrópolis. Assim mesmo, a
subsecretaria de Saúde disse aos familiares que reclamavam da demora no
atendimento: “Vai catar coquinho. Vocês vieram de Magé”.
Um das sugestões do romance de Camus é a
solidariedade na peste. Ela precisa acontecer entre as pessoas, sem o
governo, apesar do governo e até contra o governo. Os tempos do nunca antes neste país são tempos interessantes na acepção chinesa. Em bom português, são lamentáveis.
extraídadecolunadeaugustonunesopiniaoveja
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