por Ruy Fabiano Com Blog do Noblat - O Globo
Millôr Fernandes escreveu certa vez que “tarado é uma pessoa normal
surpreendida em flagrante”, sugerindo que o ser humano, na sua
dualidade, abriga zonas de sombra que, em alguma medida, o levam a
práticas e desejos inconfessáveis.
“Se as pessoas pudessem ler o pensamento umas das outras, ninguém se cumprimentava”, resumiu Nélson Rodrigues.
O preâmbulo vem a propósito do senador Delcídio do Amaral, líder do
governo, flagrado esta semana em prática, que, embora obscena e
criminosa, não é estranha a quem circula no meio político – hoje e em
qualquer tempo, aqui e em toda parte, mas hoje, convenhamos, mais aqui
que em qualquer tempo ou qualquer parte. Que o digam os investigadores
da Lava Jato.
A História mostra que a saga humana se decide mais nos bastidores e
subterrâneos que no palco iluminado dos plenários e tribunas. Prevalece,
frequentemente, a coreografia das trevas.
Delcídio foi, digamos, ao banheiro sem perceber que a porta estava
aberta. Suas excreções morais foram captadas por um gravador – e foi
essa circunstância, providenciada previamente por seu interlocutor,
Bernardo, filho do ex-diretor da Petrobras, Nestor Cerveró, que
deflagrou o desastre em que está metido.
Não fosse isso, e teria saído sorridente da conversa, exibindo todo o
prestígio de seu cargo e reputação, na certeza de que cumprira apenas
mais um ato rotineiro do que se convencionou chamar de “negociação
política” - ou quem sabe “missão política”.
Ele, de fato, era tido, por aliados e adversários, como um grande articulador; daí ser o líder do governo.
A reação no meio político evoca mais uma falha técnica que moral. Lula
chamou-o de “imbecil” e classificou de “burrada” o que fez (desmentiu
posteriormente, mas há diversas testemunhas de seu desabafo, segundo a
Folha de S. Paulo). Foi, em síntese, um amador. Rui Falcão, presidente
do PT, limitou-se a dizer que não se solidarizava pois “ele não estava
em missão partidária”. Ah, bom.
Não houve, nos dois casos, condenação moral. No próprio Senado, que não
teve como revogar a prisão, seus colegas confessavam estar
constrangidos, mas ressaltavam ser ele um grande sujeito, um amigão e
parlamentar competente.
Não era momento para elogios, de onde se deduz que, acima da condenação,
ouviu-se um lamento – e um sinal preocupante de que a taxa de imunidade
parlamentar perdeu substância. Houve ainda quem votasse por sua
libertação: 13 senadores, ironicamente o número da legenda do PT,
partido do condenado.
A presidente Dilma, informam os jornais, estaria preocupada – afinal,
era o seu líder - com “as mentiras que ele poderá dizer”, pondo assim em
cena um inédito desmentido prévio.
A preocupação, com certeza, é outra: é com as verdades que, em
circunstância extrema, quem já perdeu tudo poderá revelar, em busca de
atenuar sua pena. A Lava Jato tem levado à delação premiada gente
habituada a conviver com o sigilo.
Delcídio, que deverá perder o mandato de senador, não é um político
qualquer: era o líder não do PT, mas do governo – amigão do Lula e da
presidente. Encontrava-se com Lula semanalmente. Por isso, deixa uma
dúvida no ar: estaria em missão pessoal ou, digamos, política?
Afinal, o que engendrou – o silêncio e a fuga de um detento que é uma
caixa preta de Dilma e Lula nos escândalos da Petrobras – não
interessava apenas a ele, Delcídio. E qualquer investigação policial
parte sempre de uma pergunta: a quem interessa o crime?
Entre as “falhas técnicas” cometidas pelo senador, uma selou o seu
destino: a de ter se referido nominalmente a ministros do STF, o que
resultou no rito sumário de sua prisão.
Ele, na gravação, tenta convencer o filho de Cerveró de que conseguiria
emplacar um habeas corpus, pois tinha prestígio com alguns ministros. E
os cita. Estes, diante disso, não tinham saída senão proclamar isenção,
condenando-o.
Delcídio, assim, acabou prestando involuntariamente um serviço público: o
STF, que já foi acusado de tentar melar a Lava Jato, com o fatiamento
do processo, não tem agora como recuar da indignação exibida em relação a
esse caso.
Num momento como este, de grave crise moral, nada como uma Corte Suprema indignada. Grato, Delcídio.
Isso poderá acelerar – espera-se que sim – ações análogas em relação a
outros parlamentares, implicados na Lava Jato. O ineditismo de um
senador preso em pleno exercício do mandato poderá perder essa conotação
em breve.
Mais: a delação premiada de Nestor Cerveró, o homem-chave da negociata
de Pasadena – que o então presidente da Petrobras, José Sérgio Gabrielli
considerou “um bom negócio” -, poderá estimular outras; a do próprio
Delcídio, pressionado pela família a contar a história completa. Não
convém contrariar a família.
extraídaderota2014blogspot
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