por Fernando Gabeira O Globo
O Supremo no Brasil talvez seja o único que toma as decisões em transmissões ao vivo.
Dizem que é uma jabuticaba pois só dá no Brasil. Pelo menos é uma
jabuticaba do bem, pois tem o gosto doce e esquisito da transparência.
O fato de os ministros estarem tanto tempo na tela, convivendo no mesmo
espaço luminoso com centenas de outros personagens, talvez os jogue
nessa teia de familiaridade com os espectadores. Lewandoswki, por
exemplo, é um atacante do Bayer que costuma jogar nos dias de sessão no
Supremo. Você muda o canal e Lewandoswki é um tremendo zagueirão, em
defesa das teses do governo.
Nem sempre tenho tempo para ver tudo, mesmo nos momentos wagnerianos.
Confesso que, as vezes, me parecem prolixos, redundantes, mas o que
fazer, movem-se com uma linguagem especifica.
Talvez seja um problema pessoal. Desde garoto, escrevendo para jornal, a
luta diária com as palavras exige clareza e uma certa rapidez. Quase
nunca se consegue a satisfação. Mas há um anjo sempre lembrando: olhe
para a frente, no próximo, quem sabe.
A barreira retórica é uma das dificuldades para se entender essa Corte.
Não afirmo ainda que seja bolivariana. A corte bolivariana não
surpreende nunca. Suas decisões são sempre a favor do governo.
A corte brasileira apresentou algumas surpresas no papel dos atores
embora o resultado tenha sido favorável ao governo. Uma delas foi o voto
de Edson Fachin e Dias Toffoli. Ambos são considerados simpáticos ao
PT. Celso de Melo, Cármen Lúcia, Marco Aurélio atropelar o parlamento.
Numa das férias, quando as tinha, tentei me aproximar do mundo das leis
apoiando-me num volume das conferências de John Rawls. As férias
acabaram antes do livro mas, por coincidência, marquei no textos lido,
uma questão interessante. Por que certas questões e direitos estão fora
do alcance das maiorias legislativas ordinárias?
Não creio que o impeachment precisasse regular detalhes do impeachment.
Aconteceu o que é muito comum no pais do futebol: apitaram perigo de
gol. De novo.
Uma corte bolivariana é uma afirmação do cinismo, pois já determinou, antecipadamente, quem vai ganhar.
Está lá no livro de John Rawls:
— O que os cínicos dizem sobre princípios políticos éticos e ideais não
pode ser correto. Se fosse, a linguagem e vocabulário que se referem e
apelam a esses princípios, há muito tempo teriam deixado de existir. O
povo não e estúpido a ponto de não perceber quando essas normas são
usadas por líderes e grupos de uma forma manipulativa.
De John Rawls a Lewandoswki, o zagueiro, é mais do que mudar de canal. Um me faz sentir cidadão, outro me faz sentir enganado.
Com 16 anos de Parlamento, como posso aceitar, o argumento de que os
deputados devam votar numa chapa única para comissão do impeachment?
Como me convencer, se até para a escolha da presidência da Câmara há
chapa avulsa? Em que comissão da câmara não se permite isto? De repente,
aparece um grupo de capa preta e subtrai um direito minoritário, ao
vivo e em cores?
Felizmente, tive calma e energia para mergulhar no trabalho e sonhar com
uma corte que me surpreenda, não com a variação dos atores, mas com os
vereditos finais.
Visitei a Chapada Diamantina em chamas. Perdemos 55 mil hectares de uma
das mais ricas e diversas regiões do Brasil. No meio da fumaça e do
calor infernal, descobri as brigadas voluntárias da pequena cidade de
Lençóis, gente que deixou tudo para apagar o fogo. Essas brigadas são
importantes. Elas se antecipam ao governo, combatendo os primeiros
focos. E pressionam para que a máquina oficial entre em combate.
As chamas na Chapada Diamantina lembram-me o filme de Terence Malick;
“Cinzas no paraíso” (“Days of Heaven”). As imagens de mestre Nestor
Almendros o crepitar das chamas parecem uma cerimônia fúnebre, a
cremação da mata e dos bichos.
Seca prolongada e as chuvas intensas no sul: quando a Nasa previu que El
Niño seria intenso, era necessário um projeto nacional para reduzir
seus danos. Não houve. Com a eclosão do vírus da Zika, outro gigantesca
força tarefa é necessária. Também não saiu.
Alguns voluntários, na Chapada combatem sem botas e de camiseta. As
vezes, as fagulha os faz contorcer como se estivessem recebendo um
santo.
Talvez sejam orixás que os mantêm vivos no combate ao fogo. De qualquer
forma, é a força estranha que nos impulsiona na planície. Que ela venha
no Ano Novo e o faça acontecer: 2015 resiste em acabar.
Em certas partes do ano, costumo estar de boa vontade com o mundo e as
pessoas. É o que se chama de espírito natalino, embora nem sempre
aconteça no Natal. Quando há desencontro de época e estado de espírito, o
Natal é um pouco aborrecido. Este ano, meu espírito natalino coincidiu
com o Natal. Isto amenizou o desencanto que tive com o Supremo, ao
decidir pelo Parlamento quais são as regras do impeachment.
extraídaderota2014blogspot
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