por Fernando Gabeira O Globo
Papai Noel ou o Japonês da Federal? Sapatos de cromo ou tornozeleira
eletrônica? É um dilema para os estão no topo da política brasileira. Na
planície, foi um ano terrível, aqui e lá fora. Milhares de refugiados
de guerra, atentados, mar de lama, epidemias, corrupção.
Ainda assim, há o que celebrar. A solidariedade, por exemplo. Esteve
presente na onda de refugiados que invadiu a Europa. Nos distritos
arrasados de Mariana, felizmente, também não faltou.
Há que celebrar a competência dos médicos e cientistas brasileiros que
estabeleceram rápido a conexão entre o vírus zika e a microcefalia. E
comunicaram ao mundo. As perspectivas são aterradoras, mas seriam mais
ainda se não tivéssemos dados para, pelo menos, buscar uma vacina. Os
cientistas americanos que passaram pelo Recife ficaram admirados como se
fez tanto com equipamentos tão modestos.
Mesmo não sendo um defensor da pobreza dos meios, valorizo esta
qualidade, a tentativa de superar criativamente a limitação dos
instrumentos. Já é uma qualidade de muitos brasileiros. Com o dólar nas
alturas, talvez seja, por um tempo, uma espécie de segunda natureza.
O imperador Adriano, da escritora Marguerite Yourcenar, disse algo
interessante sobre pessoas, mas que bem poderia ser adaptado ao Brasil:
“Ele havia chegado a um certo momento da vida, variável para cada homem,
em que o ser humano se abandona ao seu demônio ou ao seu gênio e segue
uma lei misteriosa que lhe ordena destruir-se a si mesmo ou a
superar-se”.
Creio que vivemos sob essa lei misteriosa e, ao contrário de Adriano,
não a vejo comandar apenas uma coisa ou outra: os dois movimentos,
autodestruição e superação, se entrelaçam, como se a própria lei
hesitasse. O processo político brasileiro é autodestrutivo. Se apenas
implodisse mansamente... Mas é um espetáculo longo de sirenes, buscas,
batidas policiais.
De 2013 para cá, surgiu um movimento de protesto, tentando despertar
mudanças e reverter a decadência. O movimento ainda está vivo hoje,
sabendo agora que não se trata apenas de cobrar os serviços, mas
condenar a corrupção, pedir o impeachment.
Enquanto a solidariedade marcava o ano aqui embaixo, lá em cima o ano
terminava com duas notícias assombrosas: corrupção na Hemobrás e nas
obras de transposição do São Francisco. Roubam a água e o sangue de
populações vulneráveis. Naturalmente numa escala muito menor que os
assaltos à Petrobras. Não avalio os números nem artigos do Código Penal.
Não é preciso trabalhar com palavras para saber que sangue, água e óleo
são substâncias diferentes.
Por essas razões, o Natal no Brasil é uma festa no front. Um ano de
governo e o único resultado político é o processo de impeachment. Ele
nos espera no ano que vem. Assim como a crise econômica, pois recuamos
quase 4% do PIB. O Brasil talvez esteja precisando de um presente. A
disposição de cada um em seguir o próprio gênio e afastar o perigo da
autodestruição. Seguir o gênio, no texto, significa apenas usar as
próprias qualidades, superar-se como se superaram os médicos e
cientistas nordestinos.
Vamos ouvir o som das sirenes como se fosse o trenó de Papai Noel. Vamos
tirar mais algumas tornozeleiras do saco de brinquedos, e ao dobrar dos
sinos das igrejas de Mariana, lembrar que acaba um ano difícil. Os mais
velhos, como eu, sempre dão um balanço dos seus mortos. Senti a perda
de Carlos Lemos e fiquei sabendo, através da família, que ele guardou um
cheque que entreguei a ele no fim dos anos 1960. Está intacto.
Independentemente da cifra, é o cheque mais valioso que assinei na vida. Querido Lelé.
Na noite seguinte, fui ao aniversário de um amigo: 90 anos. Nadamos na
mesma piscina. Estranhei sua ausência pela manhã. Ele disse: preciso me
poupar para a festa. Ao vê-lo pulando de mesa em mesa, movendo os mesmos
braços longos que desloca na água, pensei: quantas vezes falamos do
Brasil, quantas vezes lamentamos o curso das coisas no país. Mas Armando
Salgado, esse é seu nome, erguendo uma taça de vinho alegremente,
despertou-me um sentimento essencial: sobrevivemos e é bom estar aqui.
Não creio que o Brasil se coloca um problema que não possa resolver. Há
clamor nas ruas, mesmo sob o sol de dezembro, às vésperas do Natal. As
forças autodestrutivas chegaram ao seu destino. Estão dentro de um amplo
cerco policial contra a corrupção: o que deveria ser uma experiência
histórica tornou-se um processo penal.
No ano que acaba, o difícil foi não ver a luz no fim do túnel. Se
aparecer em 2016, será uma grande conquista. Esperar que as dificuldades
desapareçam é ilusão. Uma luz, uma simples luz, atenua as asperezas do
caminho. O planeta achou sua luz na conferência de Paris e decidiu
conter o processo de autodestruição. Celebro pelas novas gerações,
embora também aí a luz não não baste: o caminho é áspero. Mas se 189
países conseguem achar um horizonte comum na luta contra as mudanças
climáticas, porque um só país não encontrará o seu na luta por melhores
governantes?
extraídadetribunadainternet
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