por Gandêncio Torquato
A campanha eleitoral do primeiro turno deixou a sensação de que a máxima
de Shakespeare - na fala de Marco Antônio no túmulo de Júlio Cesar,
vítima de traição dos senadores romanos - fustigará por bom tempo a
consciência dos nossos atores políticos: "A maldade que os homens são
capazes de fazer sobrevive a eles e as coisas boas são muitas vezes
enterradas com seus ossos". Os resíduos de sangue que respingam da
contenda entre candidatos deixarão marcas indeléveis nos muros da
política, devendo ganhar dimensão histórica. Estarão coladas à história
dos personagens.
Já vimos situações mais degradantes, como o bombástico depoimento de
Miriam Cordeiro, em 1989, que dizia ter-se separado de Lula, em 1974,
após ele tomar conhecimento de sua gravidez e sugerir aborto. Collor
acabou ganhando a eleição. A disputa em curso não deixa a desejar em
matéria de vulgaridade, mesmo sabendo que o negócio em que se
transformou a política é um dos mais afeitos aos jogos desleais.
Não se pode dizer que a campanha se tenha dedicado exclusivamente ao
tiro ao alvo. Viram-se ideias, programas, propostas e feitos de
candidatos, tanto na esfera federal quanto dos Estados. E também
perorações genéricas, cheias de boa intenção. Mas pouco ficou da
substância dos programas eleitorais, particularmente em áreas de alta
prioridade, como saúde, segurança pública, educação e reformas
fundamentais (política, fiscal-tributária, previdenciária, trabalhista,
etc.). Menção rápida a tais assuntos não foi suficiente para a devida
compreensão pela maioria do eleitorado, agravada pela modelagem de
autoglorificação das mensagens na TV. Pergunte-se ao cidadão comum se
consegue distinguir diferenças de pontos de vista entre as três
principais candidaturas sobre questões sociais, por exemplo. O que teria
sobrado, então, da verborragia eleitoreira? Infelizmente, os aspectos
negativos prevaleceram sobre os pontos positivos.
Vejamos o que restou. De Marina, o perfil mais singelo e puro quando
chegou ao palanque como candidata, resta uma moldura pendendo da parede,
vidros quebrados, precisando de urgente conserto. A "desconstrução" da
candidata acriana acabou maculando o altar da imensa fé em que se
postava pelo despreparo para governar e, pior que isso, por um tipo
mutante, sem voz própria, até flagrada na balança da verdade, que
apontou seu voto contrário à CPMF. O manto da pureza que cobria a imagem
foi puxado pelas mãos de uma campanha negativa, forma que os
norte-americanos chamam de mudslinging, geralmente aplicada em
estratégias em defesa da saúde (combate a epidemias), prevenção de
acidentes (amostra de desastres) e resgate de valores da sociedade
(transparência, lisura, honestidade, moralidade, etc.).
Nesse caso, tanto Dilma (que usou o voto de Marina contra a CPMF e suas
posições sobre homofobia, flexibilização da legislação trabalhista/perda
para trabalhadores, entre outros) quanto Aécio (que lembrava sua
vestimenta petista) arriscaram usar a tática da abelha da fábula de
Esopo: ela pousou na cabeça da serpente, pondo-se a atormentá-la com seu
ferrão; furiosa, atormentada por picadas e não podendo defender-se com
seu veneno, a cobra meteu a cabeça debaixo da roda de um carro e morreu
com a vespa. Pois é, as duas vespas fizeram os cálculos e concluíram que
podiam arrastar a adversária ao túmulo, mesmo sob o risco de irem
junto. Não só sobreviveram, como Dilma e Aécio subiram alguns degraus
nas pesquisas.
Como se sabe, há um limite para "descascar" a imagem de uma pessoa,
principalmente quando é carismática. Marina tem carisma, assim como
Lula. Mas este é ferino, duro, provocador, dá estocadas a torto e a
direito. À candidata, até por sua índole pacifista, faltou reação à
altura. O eleitor geralmente se identifica com a vítima, mas, dependendo
da situação, quer sentir proteção (força, reação, autoridade) dos seus
candidatos.
Sobre a imagem de Aécio se jogou a sombra do governo FHC, no qual
transitaram vultos envolvidos nas capas da privatização, com denúncias
do petismo sobre venda de empresas "na bacia das almas". E, ainda, de
ser ele contrário ao Mais Médicos e outras ações sociais. Só
recentemente o tucano passou a ser mais contundente, depois de bom tempo
sem fixar imagem de oposicionista. Ademais, a maneira de articular a
expressão oral - uma máquina falante, sem pausas e ênfases - gera ruído
para a compreensão da mensagem. Seu repertório não consegue entrar com
facilidade na cachola dos fundões, sendo mais palatável ao aparato
cognitivo do eleitor do meio.
Já o tiroteio contra Dilma contou com forte ajuda de livres-atiradores,
bem postados na retaguarda das redes sociais, usando armas do arsenal de
escândalos antigos (mensalão) e novos (Petrobrás, Pasadena, Abreu e
Lima) - que tiveram ampla cobertura midiática, principalmente com a
prisão de condenados na Ação Penal 470, do ex-diretor da estatal Paulo
Roberto Costa e do doleiro Alberto Youssef. Aécio, mais feroz
ultimamente, e Marina, de leve, tentaram jogar a candidata governista no
lamaçal, mas ela assegurou sua posição no ranking.
Outrora, a "desconstrução" de imagens era uma encomenda feita a
terceiros. Havia certo pejo em atacar diretamente adversários. Hoje os
torpedos são disparados por uns contra outros. A vergonha parece ter
desaparecido nas sombras da competitividade política. Por quê? Porque a
política virou um bom negócio, sendo, até, mais engraçada que o circo. O
palhaço Tiririca que o diga.
"Eu voltei. De novo eu vou votar", cantarolava ele, travestido de
Roberto Carlos, fazendo paródia da propaganda do "rei" para um grupo
empresarial. Sob o arremate do baixo nível: "Tá de saco cheio da
política? Vote Tiririca".
fonte rota2014





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