Jornalista Andrade Junior

terça-feira, 20 de março de 2018

"O coração cor-de-rosa",

por Fernando Gabeira O Globo

Poucas coisas me parecem tão brasileiras como esse coração cor-de-rosa numa parede azul que encontraram na prisão de Benfica.

Era como se estivesse numa das centenas de pequenos hotéis, de casas do interior, enfim, em todos esses lugares por onde ando com frequência.

Lembrei-me até do “Cabaré Mineiro”, de Carlos Drummond: “A dançarina espanhola de Montes Claros/dança e redança na sala mestiça./Cem olhos morenos estão despindo/seu corpo gordo picado de mosquito./Tem um sinal de bala na coxa direita,/o riso postiço de um dente de ouro,/mas é linda, linda, gorda e satisfeita.”

Dentro de mim condeno esses luxos do presídio de Benfica porque acompanhei as madrugadas dos familiares dos presos comuns esperando o momento de visitar seus entes queridos. Como sofrem para desfrutar tão poucos momentos de união.

Mas a história dos queijos franceses importados por Cabral não me indignou tanto.

Primeiro, por causa do foco: acho que essas peripécias de cadeia, essas pequenas transgressões podem nos distrair do tema principal: onde está o dinheiro que roubaram?

Certamente não se esvaiu nos queijos nem nos beijos das garotas de programa. Há fortunas nas contas dos presos de Benfica. Precisam ser encontradas e devolvidas.

Depois disso, será mais fácil encarar suas pequenas transgressões: o coração cor-de-rosa, um bolero, o piso porcelanato.

Aliás, nem sabia bem o que é isso. Para mim basta um piso firme e limpo. E não escorregadio. Há algum tempo, percebi que o limo das pedras do Arquipélago de Alcatrazes não me deixava ficar em pé.

O governo que ainda detém a máquina no Rio é simplesmente uma parte da quadrilha. Sua tarefa essencial era manter regalias que os presos comuns não têm.

Os procuradores afirmam que o número de suítes para encontros amorosos era grande para o total dos presos de Benfica. O parâmetro é a média do sistema.

Ainda assim acho que não devem ser desmontadas. Como não foi desmontado o chuveiro de água quente em Curitiba. Tudo deve ser usado para transformar o presídio em algo menos tenso.

Conheço os dois problemas: a perda da liberdade e a escassez material. A primeira é a que bate fundo. Muita gente diz: com tudo isso que tiveram lá dentro, até eu gostaria de ser preso.

É engano típico de quem valoriza as coisas diante da liberdade. O grande castigo é a prisão. Muitos só a suportam porque esconderam a grana e esperam um dia desfrutá-la.
Isso não seria justo. O dinheiro tem de voltar. Se depois disso partilharem o coração cor-de-rosa, a luz vermelha e o piso percolado com os outros, não será um desastre.

Muitos leitores vão zangar comigo, pois acham que as condições de prisão devem ser as mais duras possíveis.

Neste momento, estou no Ceará, num trabalho sobre violência urbana e facções criminosas. Três das maiores do Brasil instalaram-se aqui. E surgiu uma local, chamada Grupo de Defensores do Estado, exatamente para rivalizar com as forasteiras.

A impressão que tenho é a de que, quanto mais miseráveis e desprotegidos são os presos, mais facilmente são recrutados pelas facções criminosas, hoje um dos grandes problemas de segurança pública no Brasil.

Que os milionários de Benfica dividam seus leitos e chuveiros, mas parem de esconder o dinheiro roubado.

Está fazendo falta aos verdadeiros donos.


































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