por Roberto DaMatta O Globo
Minha tia Amália via fantasmas. Suas visões eram tão rotineiras, que eu
me perguntava como ela suportava a nossa vidinha materialista do arroz
com feijão tendo aquele dom de conjugar este mundo esmagado pela
concretude com um astral ilimitado.
Titia morreu solteira, embora tivesse sido alvo do amor de um careca que
puxava de uma perna, usava bengala e tinha um pecado mortal: era
desquitado. Quando meus tios machistas e ciumentos a surpreenderam num
banco de jardim de mãos dadas com o Agenor, foi um drama. Duvidaram de
sua inocência, certamente abusada pelas óbvias más intenções do namorado
e até mesmo sua virgindade — guardada, aliás, por mais de mais de meio
século e com a qual penso que faleceu — foi motivo de preocupação.
Foi nesta ocasião freudiana que ela viu o espectro de sua mãe Jesuína
(que havia morrido quando a filha era menina e substituída por uma
madrasta dominadora) e muitas almas de homens simpáticos, parecidos com o
Clark Gable, seu astro de cinema favorito, que a ela suplicavam
Ave-Marias e Padres-Nossos que não custam nada a ninguém.
Uma noite, quando displicentemente eu joguei minha calça curta e uma
camisa em cima da cadeira no nosso quarto de dormir, ela advertiu: “Foi
no meio de roupas assim largadas que minha mãe apareceu... Viraram a
nuvem que desenhou o fantasma. Ele se aproximou de mim, deu-me um beijo
na testa e sussurrou: ‘Eu te amo muito, minha filhinha’.”
Pela primeira vez na minha vida, me dei conta da imperiosa necessidade
do amor que minha tia Amália jamais vivenciou. Nem do seu namorado
banido, nem de nós, que dela apreendemos a lição que hoje afeta o
desconcertado universo político-social brasileiro: o retorno do
reprimido, a volta dos fantasmas, o retorno de atores que saíram do
palco.
_________
Tia Amália foi interditada. Disciplinar impulsos, restabelecer a ordem é
tão arriscado quanto operar o coração. Reformas fazem parte da
democracia. Intervenções são um tabu para uma elite neofascista que se
pensa — haja paciência! — como “aberta” e “socialista”. Intervenções
podem fracassar ou serem comédias como foram as que sofreram a cidade do
Rio de Janeiro de Sérgio Cabral filho e no desonesto regime
lulopetista.
_________
A cidade do Rio de Janeiro tem um fantasma: o Estado do Rio de Janeiro
que assombra a “Cidade Maravilhosa”. Nenhuma coletividade urbana foi tão
denegrida como este Rio que, em 1960, deixou de ser capital do Império e
da República para virar cidade-estado. E, em 1975, num gesto de
vingança eleitoral, foi sem consulta pública e em pleno regime militar
“fundida” ao Estado do Rio de Janeiro como mais uma capital, tendo a
gloria de desbancar uma modesta Niterói.
____________
Esse é o pano de fundo da cidade que rumou para o descontrole e a
intervenção. O ideal seria reformar. Mas como seguir a receita quando a
cidade se descobre governada por bandidos que, ao longo de confrontos
com a polícia, demonstram mais poder, mais inteligência (planejam
absurdamente de dentro dos presídios!) e mais eficácia do que as forças
da lei?
A latitude conquistada pelo crime foi tamanha que assaltos são
televisionados, ultrapassando os limiares jamais discutidos, da
esperteza e da malandragem, tão admirados e atribuídos à identidade
“carioca”, conforme assinalo na minha obra.
O desequilíbrio entre ordem e desordem tem também outras causas. Como
ordenar um país e uma cidade quando um ex-presidente é condenado, o
governador do Rio de Janeiro está na cadeia para cumprir uma pena de cem
anos, o presidente em exercício e vários ministros são indiciados? Se
os “de cima” roubaram, e alguns só agora estão sendo presos — por que
diabos eu vou seguir a dura senda da honestidade?
__________
É dentro desse oceano de ausências morais que se coloca a questão não
somente de restabelecer a ordem, mas de descobrir os atores que — além
de alguns juízes e promotores — vão assumir a tarefa de estabelecer
limites, já que todos têm, como dizíamos sorrindo, “todos têm o rabo
preso!”
Como encontrar os ilibados nesse rotineiro teatro de atores que são
mocinhos em público, mas, com seus amigos e companheiros de partido e
revolução, assaltam a República em particular? E, indo além, sequestram a
ética por meio de um partido que prometia “não roubar e não deixar
roubar”, mas que foi a agremiação capaz do maior assalto jamais
registrado na economia do Brasil?
___________
É nestas circunstâncias que devemos considerar o retorno dos militares.
Pois se a democracia exige tanto civilizar o capitalismo, quanto às
desmedias ambições e abusos ideológicos ela não pode dispensar um
segmento tão importante para a manutenção da ordem como o militar. Na
difícil dinâmica democrática, cujo centro é a constante revisão de si
mesma, ninguém pode ser antecipadamente demonizado. Nem todo militar é
fascista, nem todo comunista é um comedor de criancinhas e nem todo
esquerdista é imune a maracutaias. Sabemos como eles adoram prometer
tudo para todos, fazer compadrios preferenciais com os ricos e
colecionar terrenos e relógios de luxo.
PS: Essa crônica dedicada a Fernando Gabeira, a Rubem César Fernandes e a todos os exorcistas.
Roberto DaMatta é antropólogo
EXTRAÍDADEROTA2014BLOGSPOT
0 comments:
Postar um comentário