por Denis Lerrer Rosenfield O Estado de S.Paulo
O Brasil vive uma crise de autoridade, justificada por alguns como se
fosse algo próprio da democracia. Há um atropelo de prerrogativas de um
Poder constitucional sobre outro, mormente pelo Judiciário, que invade
competências alheias (o Ministério Público também o faz). Para os
agentes de tais atos, tratar-se-ia de um fortalecimento das
instituições, quando estas, na verdade, terminam por se enfraquecer. O
desequilíbrio torna-se patente. Não há democracia consolidada que não
esteja fundamentada no exercício da autoridade. Sem esta se abre caminho
para o esgarçamento das próprias instituições democráticas.
Exemplos particularmente claros dessa invasão de competências se
encontram em atos de ministros do Supremo Tribunal e da
Procuradoria-Geral da República (PGR), que passam a decidir por si
mesmos, muitas vezes à revelia da Constituição. O ministro Barroso, por
exemplo, em nome de suposta vontade popular ou clamor da sociedade,
decide sobre um indulto do presidente, como se pudesse legislar e tomar o
seu lugar. O mesmo ministro decide em ato monocrático abrir o sigilo
bancário do presidente, prescindindo da própria opinião do Ministério
Público.
A PGR pretende abrir investigação sobre atos do presidente anteriores ao
seu mandato, como se investigar não fosse uma forma de responsabilizar
uma pessoa. Entramos no terreno do opinar, sem que os argumentos
aguentem uma análise mais detida. Juízes e promotores começam a brincar
com as palavras, como se, por seus meros atos de linguagem, estivesse em
curso uma batalha contra a corrupção. A Constituição, de texto,
torna-se um pretexto para atos de “interpretação”, que são, mais
simplesmente, de mera opinião.
Diria que a questão é de natureza hobbesiana, isto é, quem decide em
última instância os assuntos do Estado. Em termos desse filósofo: quem
seria o soberano? O que temos observado nos últimos tempos é um
protagonismo do Judiciário, tomando a si essa decisão, como se a ele
coubesse a última palavra. Numa exacerbação dessa atitude, ministros do
Supremo, em decisões monocráticas, representam-se acima da função
presidencial. O problema é de monta, pois juízes, promotores e policiais
não são eleitos, mas fruto de concurso público. Não exercem, pois,
nenhuma função política de representação. Não são representantes do
povo, a quem incumbiria a escolha em eleições.
Há uma suposta normalidade, que é, na verdade, enganadora, por ser
expressão de algo extremamente problemático, relativo à arte mesma de
governar e às suas condições próprias de exercício. O problema não diz
respeito tão só, embora tenha agora essa aparência, ao governo atual,
mas concerne a qualquer um que venha a dirigir o País. A questão ganha
ainda outra dimensão, pois tal desvirtuamento de competências é
amplamente apoiado pela sociedade, que vê no Judiciário e no Ministério
Público defensores da moralidade pública.
A Lava Jato tornou-se, nesse aspecto, um símbolo nacional. Há,
evidentemente, razões de sobra para essa atitude da sociedade, na medida
em que políticos e partidos, no Executivo e no Legislativo, se tornaram
agentes da corrupção e do desvio de recursos públicos. A imagem desses
dois Poderes é muito ruim, por obra do que eles mesmos fizeram. Há,
todavia, em curso uma deformação de caráter institucional, visto que
Judiciário e Ministério Público se apresentam como a encarnação da
ética, mesmo quando assumem posições nitidamente imorais, como na defesa
dos seus privilégios, quando da abortada reforma da Previdência ou,
agora, numa greve para a manutenção de um substancial auxílio-moradia.
Os benefícios particulares surgem velados sob a máscara da luta contra a
corrupção.
Reitere-se, aqui, uma condição própria das sociedades democráticas. Os
membros do Poder Legislativo e os titulares do Executivo são eleitos,
escolhidos pelos cidadãos. Eis um fato da soberania popular, por mais
perniciosos que possam vir a ser os resultados dessa escolha. Há outras
vias, como a autoritária, em que não há escolhas eleitorais, mas a
designação pura e simples dos governantes pelos que detêm o uso da
força. Se o Judiciário e o Ministério Público, não escolhidos pelos
cidadãos em processos eleitorais, estiverem enveredando pelo caminho de
serem eles os “governantes”, estariam entrando num processo de tipo
autoritário, embora com o apoio da sociedade, farta dos políticos.
Uma forma de resgate do equilíbrio entre os Poderes e, mesmo, da
soberania popular por intermédio de seus representantes seria, por
exemplo, a Câmara dos Deputados promulgar decretos legislativos anulando
atos excessivos tanto do Ministério Público quanto de ministros do
Supremo. Seria uma sinalização de que há limites no que diz respeito à
competência da Suprema Corte, cabendo ao Legislativo exercer sua função
própria de representante do povo. Atos monocráticos de ministros não são
atos de representação popular, que só podem ser exercidos por aqueles
que se submeteram a processos eleitorais.
O resultado de todo esse processo é um nítido enfraquecimento da posição
do presidente, com este nem podendo exercer convenientemente a sua
autoridade estatal. Vê-se obrigado a dar explicações todo o tempo,
descuidando-se, em consequência, das atividades propriamente
governamentais. Justifica-se incessantemente, quando o País tem
urgências que não vão merecer, então, o tratamento adequado. O
presidente, na verdade, encontra-se encurralado, como se os artífices
desse processo de cunho político tivessem como único objetivo
enfraquecê-lo. Para além de uma questão eleitoral, há o problema do
exercício mesmo da autoridade. Aparentemente, trata-se do presidente
Michel Temer, quando a questão diz respeito não somente a qualquer
presidente que venha a ocupar o seu lugar, mas ao destino da democracia
brasileira.
*PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS
extraídaderota201blogspot
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