por Bolívar Lamounier
No futuro, precisaremos de uma reforma constitucional abrangente, quanto a isso não há dúvida. Mas, no momento, temos no colo um coquetel altamente explosivo:
1) um STF faccioso, descomedido em seu ativismo político, que há tempos vinha perdendo estatura moral;
2) a encenação de ontem liquidou o pouco de seriedade que lhe restava;
3) embora despido das qualidades básicas que se requer de uma Suprema
Corte, ele dá claras mostras de não haver compreendido o esvaziamento a
que chegou e, em particular, o ridículo de sua pretensão de arbitrar os
conflitos políticos que têm vindo à tona constantemente desde que a
Lava-Jato desvendou a trama da megacorrupção que se apossou no país;
4) um sério complemento do ponto anterior é o fato de meia dúzia de
empresas terem posto no bolso praticamente todos os partidos
representados no Legislativo;
5) por cima de tudo isso, um corolário explosivo: as chamadas “cláusulas pétreas” da Constituição de 1988.
O Brasil é o único país do mundo que não admite a prisão de um
condenado antes do “trânsito em julgado”, ou seja, antes de esgotados
todos os recursos previstos na Constituição. No mundo inteiro, um
condenado pode recorrer a instâncias superiores: isso é óbvio e não
poderia ser diferente numa democracia. Mas, uma vez condenado na segunda
instância (uma Corte de Apelação, instituição que no Brasil se
corporifica nos Tribunais Regionais) estes podem determinar a reclusão. O
condenado pode recorrer, mas a partir daí tem que fazê-lo atrás das
grades.Lula foi não só condenado pelo TRF-4, mas condenado por unanimidade e com agravamento da pena. Dá-se, porém, que, em nosso caso. a reclusão esbarra num obstáculo intransponível: o trânsito em julgado, que é uma cláusula pétrea. Essa é a razão pela qual o STF, na súmula 691, afirmou que o condenado “pode” ser preso, mas não disse expressa e imperativamente que DEVE sê-lo.
É fácil perceber que, num Supremo composto por personalidades como as que o integram, um condenado que disponha de recursos para pagar dezenas de milhões de reais em honorários advocatícios conseguirá postergar indefinidamente o processo, empurrá-lo com a barriga, até a prescrição.
Dessa combinação de fatores, uma conclusão se impõe inexoravelmente: o combate à grande corrupção de colarinho branco é uma miragem. Deixará de sê-lo se, por uma feliz conjunção de circunstâncias, um STF cônscio de seu papel, composto de juristas altivos e conscientes de sua missão, mantiver a autonomia implicitamente concedida aos TRFs para que a prisão em segunda instância se concretize. Isso obviamente não acontecerá se em determinado momento a composição do STF for desprovida de princípios, beirando a abjeção política e moral.
Mas o que acima foi dito ainda não exaure a questão. As chamadas “cláusulas pétreas” pairam acima de todas as instituições e instâncias políticas. Nem o Congresso pode alterá-las por meio de uma PEC (Proposta de Emenda Constitucional). A única possibilidade de alterá-las é a convocação de uma nova Assembleia Constituinte, hipótese que pressupõe a ruptura de todo o tecido institucional vigente. Não preciso ressaltar que essa aberração da Constituição de 1988 contradiz frontalmente o princípio da soberania popular, pilar inarredável da democracia representativa.
Dá-se, entretanto, que o poder político é como a natureza: abomina o vácuo. Diante de circunstâncias graves que soem ocorrer com frequência no processo político de qualquer país e inexistindo a possibilidade de convocar uma constituinte originária, a estultice de “petrificar” cláusulas importantes para a ordem democrática praticamente obriga os integrantes do STF a contornar as cláusulas pétreas, a despetrificá-las, ou seja, a apelar para o jeitinho e para a malandragem.
O resultado, então, é que o país, teoricamente democrático, passa a ser governado por 11 cavalheiros que não recolheram nas urnas um voto sequer. Na prática, esse minúsculo corpo não eletivo passa a encarnar (seria mais correto dizer usurpar) a soberania popular.
Salta aos olhos que essa série de aberrações politico-constitucionais deixará o país, como está deixando, no limiar de uma grave crise. Foi o que ocorreu no famigerado 22 de março. Os onze cavalheiros do apocalipse contrapuseram-se sem a menor cerimônia à vontade dos 150 milhões de cidadãos aptos a votar em nosso país. A contraposição que dessa forma se estabeleceu é frontal. A situação que assim se abriu é muito clara. Ou eles recuam moto próprio, alteram as decisões de ontem e restabelecem a autonomia da Corte de Apelação (o TRF-4) ou terão de ser levados a fazê-lo pela força das ruas. Alea jacta est.
EXTRAÍDADEPUGGINA.ORG
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