Jornalista Andrade Junior

domingo, 25 de março de 2018

"Misterioso mundo de sócios",

por Paulo Delgado O Estado de S.Paulo

 O crime organizado é um sistema que se aproveita das certezas erradas do sistema de valores do Estado de Direito. Para ambos, a civilização é uma obra-prima em perigo. Já o povo é o peão desse jogo de xadrez. 
Os dois sistemas são contaminados pela fartura. Um usa a liberdade sem limite, o outro quer limite na defesa da liberdade. A promiscuidade não os ameaça de extinção. Os dois querem moderação, como se a alta violência entre nós fosse fruto de falta, e não de excesso. Quando o governo acerta, e a maioria aplaude, o mal aciona o desafeto e impõe a lentidão.
A resistência humana é feita pela maioria silenciosa, que sabe ser necessário enfrentar o crime, devolver a liberdade ao cidadão, libertar jovens da cilada, bloquear o engajamento da boa-fé no erro. O sabe-tudo usa a negatividade para deter a esperança.
O crime na política liquidou a inteligência e projetou a patologia da desinfecção no País. É hora de enfrentar a onda de destruição da autoridade feita por má autoridade, pelo autoritário e pela falsa limpeza do sujo.
O niilismo gangrena a sociedade democrática. Há cada vez menos políticos universalistas, humanistas, progressistas, liberais. Prospera quem for de gueto, famiglia, facção. O mal fala bem com o sectário, azeda diálogo, provoca infelicidade no círculo dos livres. A manipulação é seu roteiro de alucinação. Afogar o povo na infecção mortal do pessimismo. 
O Brasil não está erigido sobre contratos formais respeitados. Todos os interesses são esquartejados pela mais primitiva exaltação do individualismo. Ninguém é informado de que ultrapassou o porcentual de bobagem que pode dizer em público e, pasmo, a mixórdia no Supremo é de deixar Abraão descrente. Um feudalismo judicial provinciano domina a cena da Alta Corte, descomprometida com a norma que a regula. É um abre-fecha, multitarefa, cria lei como quem rola pedra. Há ministro que quer o País vestido com a sua fantasia. Parece autor dessas novelas para quem não resta mais protegida nenhuma partícula privada do destino do cidadão. A transparência do mal e sua obsessão pela lascívia.
No caso da segurança pública, quando um manipulador diz recear alguma coisa, esteja certo de que é isso mesmo que ele deseja provocar. Mas podemos apostar, pela alta qualidade do silêncio das ruas, que surge nova geração de militantes da cultura da paz, outros procedimentos e horizontes se abrem.
O poder do crime não aceita ser reversível, como o poder democrático. Opera por contatos e intimidações, não é uma instituição, é um campo de força gravitacional. Sua infiltração magnética na sociedade é infinita. Balada insana, domina tudo, invade a tela, corrompe igreja, empolga especialista. Não encontra mais resistência. Não pode ser derrubado sem ver o fundo da doença, sua imantação social, o ciclo monetário e legal que o sustenta.
Conseguiu misturar sentimentalidade com terror, sigilo com cumplicidade, praia com arrastão, descontração carioca com domínio do medo. Tudo sobre segurança pública vaza para os seus alvos numa fuga ao pudor do Estado.
O que os opositores da prontidão no Rio talvez pressintam é o fato de que a esperança que desperta não é da ordem da força, nem do poder. Ela desacumula o real viciado e privilegia sua unilateralidade fora do poder, dos partidos, das instituições dominadoras. É a porta-voz dos costumes adormecidos, que é pensar livremente. O apoio da massa silenciosa à política acertada de um governo sob ataque de um arrepia-cabelo na má consciência nacional. 
O vazio por trás do poder assusta os que pretendem ser donos da ilusão do povo, das massas inertes, indiferentes aos interesses do poder. A elevada motivação das operações de paz, o voluntarismo neutro e generoso, a cruz vermelha que surge na hora certa no lugar necessário, o médico sem fronteira que não cobra nada para cuidar dos que acolhe estão acima da conversa fiada dos donos de poder. A fascinação pela paz e pela vida tranquila é uma catástrofe para quem fez da miséria e da violência mercado lucrativo nesse misterioso mundo de sócios.
O crime revela a tramoia que se tornaram a ideologia e seus personagens dominadores. Sempre impulsiona pela direita gigolôs de quartéis, pela esquerda, gigolôs de pobres. O pessimista, que alimenta os dois espectros, sempre atrasado, se abraça ao realista. Na fase terminal que vivemos, quando a confusão e o contágio atingiram tudo, é impossível deter o surgimento dos messias em todas as instituições. É que a forma de atuar do demagogo, em sua maratona circular, o atravessa para o outro lado, onde se encontra o criminoso.
A indiscriminação de tudo, o pode tudo, é como um vírus contagioso. Um ciclo inteiro, falador, perverso, completou-se. A cultura que o impulsiona é a da irradiação, o triunfo do artificial, do iludir o pobre e saquear o rico. Exacerbada pelo jogo fanático do poder sobre o território dominado, o mesmo apetite de controle do cargo ocupado. Um sistema excessivo que alimenta a epidemia do mal, cujo excedente produzido é a criminalidade em geral.
O maior desafio no controle do crime é o que fazer ao desvendar seu mistério. Quando o tráfico deixa de ser um poder do crime para se tornar um poder político, com sua estratégia de dominação social, começa a se desfazer a verdade do Estado. O que está em jogo é o atalho que o crime organizado usou para se infiltrar e se beneficiar da improvisação da política do País nos últimos anos. Sem estancar as miragens e os abismos que ainda nos dominam não será fácil controlar a farra cultural que produziu tanta intimidade entre dinheiro-poder-delito. Se o social é usado para melhor gravitar na orbita do capital, quem vale mais? Desagregados os valores, tudo se contamina, o positivo não expulsa o negativo.
Os negócios do mal, a atual escravidão do brasileiro. “Andrada, arranca este pendão dos ares. Colombo, fecha a porta dos seus mares”.
*SOCIÓLOGO, COPRESIDENTE DO CONSELHO DE ECONOMIA, SOCIOLOGIA E POLÍTICA DA FECOMERCIO/SP
















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