por Paulo Delgado O Estado de S.Paulo
O crime organizado é um sistema que se aproveita das certezas erradas do
sistema de valores do Estado de Direito. Para ambos, a civilização é
uma obra-prima em perigo. Já o povo é o peão desse jogo de xadrez.
Os dois sistemas são contaminados pela fartura. Um usa a liberdade sem
limite, o outro quer limite na defesa da liberdade. A promiscuidade não
os ameaça de extinção. Os dois querem moderação, como se a alta
violência entre nós fosse fruto de falta, e não de excesso. Quando o
governo acerta, e a maioria aplaude, o mal aciona o desafeto e impõe a
lentidão.
A resistência humana é feita pela maioria silenciosa, que sabe ser
necessário enfrentar o crime, devolver a liberdade ao cidadão, libertar
jovens da cilada, bloquear o engajamento da boa-fé no erro. O sabe-tudo
usa a negatividade para deter a esperança.
O crime na política liquidou a inteligência e projetou a patologia da
desinfecção no País. É hora de enfrentar a onda de destruição da
autoridade feita por má autoridade, pelo autoritário e pela falsa
limpeza do sujo.
O niilismo gangrena a sociedade democrática. Há cada vez menos políticos
universalistas, humanistas, progressistas, liberais. Prospera quem for
de gueto, famiglia, facção. O mal fala bem com o sectário, azeda
diálogo, provoca infelicidade no círculo dos livres. A manipulação é seu
roteiro de alucinação. Afogar o povo na infecção mortal do pessimismo.
O Brasil não está erigido sobre contratos formais respeitados. Todos os
interesses são esquartejados pela mais primitiva exaltação do
individualismo. Ninguém é informado de que ultrapassou o porcentual de
bobagem que pode dizer em público e, pasmo, a mixórdia no Supremo é de
deixar Abraão descrente. Um feudalismo judicial provinciano domina a
cena da Alta Corte, descomprometida com a norma que a regula. É um
abre-fecha, multitarefa, cria lei como quem rola pedra. Há ministro que
quer o País vestido com a sua fantasia. Parece autor dessas novelas para
quem não resta mais protegida nenhuma partícula privada do destino do
cidadão. A transparência do mal e sua obsessão pela lascívia.
No caso da segurança pública, quando um manipulador diz recear alguma
coisa, esteja certo de que é isso mesmo que ele deseja provocar. Mas
podemos apostar, pela alta qualidade do silêncio das ruas, que surge
nova geração de militantes da cultura da paz, outros procedimentos e
horizontes se abrem.
O poder do crime não aceita ser reversível, como o poder democrático.
Opera por contatos e intimidações, não é uma instituição, é um campo de
força gravitacional. Sua infiltração magnética na sociedade é infinita.
Balada insana, domina tudo, invade a tela, corrompe igreja, empolga
especialista. Não encontra mais resistência. Não pode ser derrubado sem
ver o fundo da doença, sua imantação social, o ciclo monetário e legal
que o sustenta.
Conseguiu misturar sentimentalidade com terror, sigilo com cumplicidade,
praia com arrastão, descontração carioca com domínio do medo. Tudo
sobre segurança pública vaza para os seus alvos numa fuga ao pudor do
Estado.
O que os opositores da prontidão no Rio talvez pressintam é o fato de
que a esperança que desperta não é da ordem da força, nem do poder. Ela
desacumula o real viciado e privilegia sua unilateralidade fora do
poder, dos partidos, das instituições dominadoras. É a porta-voz dos
costumes adormecidos, que é pensar livremente. O apoio da massa
silenciosa à política acertada de um governo sob ataque de um
arrepia-cabelo na má consciência nacional.
O vazio por trás do poder assusta os que pretendem ser donos da ilusão
do povo, das massas inertes, indiferentes aos interesses do poder. A
elevada motivação das operações de paz, o voluntarismo neutro e
generoso, a cruz vermelha que surge na hora certa no lugar necessário, o
médico sem fronteira que não cobra nada para cuidar dos que acolhe
estão acima da conversa fiada dos donos de poder. A fascinação pela paz e
pela vida tranquila é uma catástrofe para quem fez da miséria e da
violência mercado lucrativo nesse misterioso mundo de sócios.
O crime revela a tramoia que se tornaram a ideologia e seus personagens
dominadores. Sempre impulsiona pela direita gigolôs de quartéis, pela
esquerda, gigolôs de pobres. O pessimista, que alimenta os dois
espectros, sempre atrasado, se abraça ao realista. Na fase terminal que
vivemos, quando a confusão e o contágio atingiram tudo, é impossível
deter o surgimento dos messias em todas as instituições. É que a forma
de atuar do demagogo, em sua maratona circular, o atravessa para o outro
lado, onde se encontra o criminoso.
A indiscriminação de tudo, o pode tudo, é como um vírus contagioso. Um
ciclo inteiro, falador, perverso, completou-se. A cultura que o
impulsiona é a da irradiação, o triunfo do artificial, do iludir o pobre
e saquear o rico. Exacerbada pelo jogo fanático do poder sobre o
território dominado, o mesmo apetite de controle do cargo ocupado. Um
sistema excessivo que alimenta a epidemia do mal, cujo excedente
produzido é a criminalidade em geral.
O maior desafio no controle do crime é o que fazer ao desvendar seu
mistério. Quando o tráfico deixa de ser um poder do crime para se tornar
um poder político, com sua estratégia de dominação social, começa a se
desfazer a verdade do Estado. O que está em jogo é o atalho que o crime
organizado usou para se infiltrar e se beneficiar da improvisação da
política do País nos últimos anos. Sem estancar as miragens e os abismos
que ainda nos dominam não será fácil controlar a farra cultural que
produziu tanta intimidade entre dinheiro-poder-delito. Se o social é
usado para melhor gravitar na orbita do capital, quem vale mais?
Desagregados os valores, tudo se contamina, o positivo não expulsa o
negativo.
Os negócios do mal, a atual escravidão do brasileiro. “Andrada, arranca
este pendão dos ares. Colombo, fecha a porta dos seus mares”.
*SOCIÓLOGO, COPRESIDENTE DO CONSELHO DE ECONOMIA, SOCIOLOGIA E POLÍTICA DA FECOMERCIO/SP
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