Jornalista Andrade Junior

domingo, 25 de março de 2018

"Como viver sem criados?",

por Roberto DaMatta O Globo

Uma das maiores estranhezas vividas por brasileiros nos EUA é a ausência de empregados domésticos. De pessoas que fazem coisas pequenas e rotineiras para nós



Nós reclamamos dos privilégios, das generosas e imorais aposentadorias e do exagero dos muitos assessores, secretários, motoristas e ajudas de custo ligados a cargos públicos, mas jamais cogitamos de dispensar os nossos criados. Um dos meus vizinhos falava com ironia em folha de pagamento, tantos eram os seus serviçais.
Uma das maiores estranhezas vividas por brasileiros nos Estados Unidos é a mais absoluta ausência de empregados domésticos. De pessoas que fazem coisas pequenas e rotineiras para nós.
Na América existem cleaning ladies — faxineiras horistas — mas são raras as empregadas multiuso (babás, cozinheiras, confidentes...) como as nossas, não obstante minha duvidosa certeza de que tudo está sempre mudando!
Na minha longa experiência como estudante e professor visitante nos Estados Unidos, testemunhei alguns casos de bolsistas acompanhados de empregadas que mal cabiam nas modestas moradias disponibilizadas pela universidade à qual se associavam. Os locais se assombravam, mas tais auxiliares são indispensáveis para o nosso estilo de vida, porque são eles que limpam os nossos banheiros, fazem as nossas camas, varrem nossas casas, transformam alimento em comida, lavam nossas roupas e nos servem cafezinho, água e sobremesas, tirando e botando na hora certa os pratos da mesa, quando reproduzem um familismo que é parte do nosso modo de ser. São eles que nos fazem companhia e nos escutam nas nossas atribulações. Essa paciência pessoal e sempre generosa com a qual os subordinados nos ouvem, acalentam, obedecem, aconselham, aliviam, sorriem e perdoam é parte dessas ocupações. E são elas, com certeza, que compensam a enorme desigualdade econômica entre nós.
São esses empregados que mantêm a nossa distância do sujo, garantindo nossa superioridade aos nossos egos que o mundo — apesar de toda a corrupção nascida precisamente nesses abismos de desigualdades tidas como naturais — não acabou mas está, queira Deus, terminando.
De fato, o que seria do sabido se não fosse o trouxa; do senhor se não fosse o escravo; do patrão se não fosse o empregado; e da “dona da casa” feminista e emancipada, se não fossem as suas criadas...
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Corria o ano de 1979 em Madison, Wisconsin, onde eu servi como professor visitante graças a um generoso e oportuno convite de Thomas Skidmore, torando-me de um crônico aperto financeiro.
Estamos pai, mãe, filho mais velho, filha e o rebento mais novo assistindo a um filme quando alguém diz:
— Estou louco para comer um sanduíche. Mamãe, você pega um sanduíche pra mim?
— Não vou perder o filme.
— Então minha irmã, você faz esse favor?
— Estou vendo o filme...
— E aí, meu irmãozinho caçula, você faz o sanduíche?
— Não sou emproado...
Diante da súbita consciência da hierarquia entre pais e filhos, entre gêneros e idades, a qual não podia ser sustentada sem uma empregada, surgiu um riso e, em seguida, um pacto. Aqui nos Estados Unidos é a gente mesmo quem faz: somos (não é incrível?) nossos próprios empregados. Vamos pausar a televisão e cada qual faz o seu sanduíche.
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Em Berkeley, Califórnia. Um casal com filhos pequenos chegou, causando rumores, com uma uma criada.
Lídia era impecável. Cozinhava e era carinhosa com as “crianças”. Logo, porém, aprendeu inglês e começou a namorar um americano que se doutorava em Matemática. A rotina americana foi fazendo com que os laços de subordinação fossem sendo substituídos por valores igualitários. Os patrões ficaram menos autoritários, e Lídia, mais companheira.
Quando ofereceram um jantar a amigos, ordenaram a Lídia que o preparasse. Receberam como resposta a intrusão do individualismo-com-igualitarismo americano: “Sinto muito, mas não vou poder. Tenho um date com meu namorado mas eis aqui 20 dólares para vocês comprarem uma pizza!”
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Impossível esquecer um outro caso. Desta vez exposto no livro “Notas sobre o Rio de Janeiro”, do comandante John Luccock, quando, nos anos 1800, visitava uma casa brasileira e surpreendia, com seu olhar igualitário de inglês, o comportamento de uma dama carioca sentada numa esteira e rodeada de suas escravas:
“Junto e ao alcance da mão”, relata Luccock, “estava pousado um canjirão (= jarro) d’água. Em certo momento, a dama interrompeu a conversa para gritar por uma outra escrava que estava em local diferente da casa. Quando a negra entrou no quarto, a senhora lhe disse:
‘Dê-me o canjirão’. Assim fez ela, sua senhora bebeu e o devolveu; a escrava recolocou o vaso onde estava e retirou-se sem que parecesse ter dado pela estranheza da ordem, estando talvez a repetir o que já fizera milhares de vezes antes”.
É óbvio que a “estranheza” exprime o etnocentrismo de caráter igualitário do observador, abismado com o que percebia como inércia ou preguiça da dona da casa, incapaz de mexer-se para pegar a botija d’água situada ao alcance de sua mão.
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Já o nosso etnocentrismo toma como natural a presença de ter alguém que faça coisas para nós, garantindo o eixo superior/inferior que é central para o nosso estilo de vida. Será que, sem criados, não sabemos quem somos?
Falar em reforma ou intervenção sem enxergar essa matriz hierárquica e interdependente, que junta protocolos oficiais com elos pessoais, é querer continuar enxugando gelo.

Roberto DaMatta é antropólogo























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