J.R. Guzzo:Publicado na edição impressa de VEJA
Ninguém sabe se haverá mesmo, dentro de alguns anos, um muro de concreto fechando de ponta a ponta a fronteira terrestre entre os Estados Unidos e o México. Também não se sabe se pessoas da religião muçulmana serão no futuro próximo proibidas de entrar em território americano. É igualmente desconhecido se os cidadãos estrangeiros, de modo geral, passarão a ser considerados indesejáveis nos Estados Unidos, se o consumo de produtos importados será visto como uma atitude hostil aos interesses nacionais ou se a imprensa americana será tratada como uma inimiga do governo e do bem-estar comum. Mas é exatamente isso, entre outras ideias com o mesmo princípio ativo, que a maioria dos cidadãos americanos deseja que aconteça em seu país. Eis aí o problema: Donald Trump, que fez toda a sua campanha eleitoral propondo tais coisas, foi eleito para a Presidência dos Estados Unidos, mas quem realmente está querendo que a vida seja assim são os 60 milhões de cidadãos que votaram nele e o colocaram na Casa Branca. Mais do que Donald Trump, na verdade, venceu uma visão de como deve ser a política no mundo de hoje – e essa visão é doente.
Trata-se, antes de mais nada, da visão do “nós contra eles”. Esse “nós” é o povo bom, honesto e trabalhador – e defendido pelo grande líder popular. “Eles” são todos os que pensam de um modo diferente, ou propõem outras soluções para os problemas. São chamados de “elite”. Nunca se dão nomes ou identidades à “elite”. Trata-se do inimigo, apenas isso. São “eles” os culpados por tudo o que existe de errado no país; são eles que não deixam consertar os erros. Só pode ter razão quem concorda e apoia o grande líder saído do povo; e só ele, por força dos seus dons exclusivos, é capaz de ter soluções para os problemas. Essas soluções são sempre as mais fáceis, não requerem nenhum tipo de trabalho ou esforço e, mais do que tudo, têm a grande atração de desobrigar as pessoas de pensar; basta acreditar que o líder tem a capacidade de resolver tudo. E, se alguém achar que suas soluções podem estar erradas – bom, esse alguém é da “elite”, justamente, está do lado “deles”, e como tal não tem o direito de participar da vida pública.
A visão política que venceu junto com Trump também acredita no “Estado forte”, e na sua intervenção bruta para resolver tudo o que é difícil. Esqueçam a gritaria de campanha contra o tamanho “do governo de Washington”, ou a intromissão do “Estado” na vida do cidadão. Na vida real, as propostas feitas pelo vencedor estão sempre chamando a autoridade pública para resolver as coisas. Há problemas com a travessia ilegal da fronteira mexicana? O governo tem de construir uma muralha na fronteira. Há problemas com o terrorismo originado em países muçulmanos? O governo tem de proibir a entrada de muçulmanos nos Estados Unidos. Americanos estão perdendo empregos por causa da importação de produtos estrangeiros? O governo tem de bloquear as importações – e por aí se vai. Outro artigo de fé na ideologia de Trump é a hostilidade à imigração e aos imigrantes – vistos como uma ameaça ao emprego dos cidadãos americanos e aos valores maiores da sociedade. É gente que aceita trabalhar por um salário mais baixo; não se pode admitir que venham disputar empregos com o cidadão nacional.
O fechamento do mercado de trabalho é, na verdade, apenas um dos elementos de todo um pensamento protecionista, que não gosta do livre-comércio, da concorrência nem da liberdade econômica em geral. Trump prega a revisão de tratados e de práticas comerciais que abrem o mercado americano para produtos estrangeiros. Quer cortar importações. Quer proteger as empresas americanas criando dificuldades para as empresas de fora competirem com elas. Quer criar, manter ou desenvolver o “fornecedor nacional”. Na cabeça de Trump e de seu eleitorado, o mundo exterior não é visto como um possível fornecedor de novas tecnologias nem de produtos melhores, mais eficazes ou mais baratos – é visto como uma ameaça. O estrangeiro, segundo essa maneira de encarar o mundo, está sempre se organizando para prejudicar os interesses americanos. Trump não gosta da independência do Banco Central, que considera manipulado pelos grandes interesses financeiros. Não gosta de cultura – é coisa da “elite”. Não gosta de liberdade.
Donald Trump é apontado hoje como o maior perigo que a “direita” coloca para o mundo. Muito interessante, porque nada é tão parecido com o novo presidente americano quanto Lula e a esquerda brasileira. Trump e Lula – tudo a ver.
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