José Nêumanne: O Estado de São Paulo
Dirigente da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), o jornalista brasileiro Ruy Mesquita aproveitou um encontro fortuito com Fidel Castro para questioná-lo sobre a sorte dos dissidentes presos por seu regime em Cuba. “No conoces mi hermanito Raúl!”) (“Você não conhece o maninho Raúl”), respondeu, enigmático, o líder revolucionário. O Dr. Ruy e Fidel não estão mais entre nós, mas o alerta, feito há quase 57 anos, continua valendo: ninguém no mundo conheceu mais o irmão mais novo de Fidel do que este, agora morto. Daí a angústia expressa pela blogueira dissidente Yoanni Sánchez depois da notícia dada pelo mesmo irmão na noite desta sexta-feira 25, coincidindo com uma das maiores celebrações comerciais da história do capitalismo, inimigo preferencial da família Castro – a Black Friday (sexta-feira negra). Não se sabe, portanto, o que vai ser dos cubanos a partir de agora, muito embora, ao menos em teoria, o comandante de Sierra Maestra estivesse do poder havia já dez anos.
Repórteres apressados, encontrados em Havana por acaso ou para lá enviados (de férias em simpáticos lares cubanos), entupiram os telejornais brasileiros no fim de semana com relatos sobre a tristeza com que os havaneses teriam recebido a morte do líder. Não podia haver notícia mais apropriada para profissionais da imprensa e da academia criados no mundo da fantasia da revolução libertadora dos povos oprimidos da Terra. Mas não devem ter visto apenas provas de dor e de luto pela morte do barbudo, uma das celebridades mais odiadas e festejadas da segundo metade do século 20. Ele cruzou os portais do século 21 com os pés fincados em apelos distantes: o Terror jacobino de Robespierre na Revolução Francesa no século 18 e o comunismo de Marx e Engels dos 1800, inspirando os novecentos com a revolução soviética de Lenin, Trotsky e Stalin.
Da estirpe inaugurada com o Jean-Jacques Rousseau pré-revolucionário, pensadores célebres e celebrados como Jean-Paul Sartre renderam suas homenagens ao inebriante romantismo dos idos de outubro (novembro no Ocidente) em Moscou. Essa espécie de entorpecimento intelectual sobreviveu aos ataques de lucidez de Camus, Jouvenel, Aron, Herzen e Berlin, à desestalinização da União Soviética, potência comunista que se confrontou com o imperialismo americano durante toda a guerra fria, até ser destruída pelo golpe de mestre da “guerra nas estrelas”, encenação de Reagan. Este levou o império oponente à bancarrota, à “glasnost” de Gorbachev e à derrubada do Muro de Berlim, em 1988.
Fidel Castro Rúz, contudo, sobreviveu, incólume e impávido colosso, a todos os fiascos. O ouro de Moscou, que sustentava o capricho de uma ilhota a 140 quilômetros das costas da Flórida, parou de fluir para sua algibeira, mas ele não esmoreceu. A Alemanha Oriental de seu amigo Erick Honeker desmoronou com a demolição do check point Charlie e a unificação da velha Alemanha e de Berlim, a venerada capital da Prússia. A Venezuela de Hugo Chávez, não tendo mais sequer como se sustentar, teve de deixar de lhe prover o sustento. Madame Rousseff foi deposta por nosso Congresso Nacional e, por isso, deixaram de pingar os recursos do BNDES brasileiro para a construção do Porto de Mariel. Mas Fidel, em castelhano fiel, nunca traiu suas convicções, como diria Temer, certamente por nada mais ter a dizer. E o velho morreu opondo-se à aproximação com Barack Obama, o primeiro presidente negro da águia ianque. “Ele será julgado pela História”, disse o novo quase aliado, com 56 anos de atraso: o próprio ancião já havia feito esse prognóstico logo depois de ter derrubado o tirano proxeneta Fulgêncio Batista, no instante em que as roletas giravam nos cassinos de Havana, em plena festa de ano-novo.
Donald Trump recebeu a notícia da morte do velho inimigo dos americanos com um desaforo: “Ele foi um ditador brutal que oprimiu o seu povo”. A frase é apropriada na boca de um populista, mas é também duas vezes original. Primeiro, ao lembrar o homem pelo que ele sempre foi: o mais longevo ditador do século 20, superando seus colegas de ofício Hitler, Mussolini e Mao. Sua obra mortífera superou a do cambojano Pol Pot e a dos cucarachos boçais Trujillo, da República Dominicana, Somoza, da Nicarágua, e Stroessner, do Paraguai, entre vários. E também porque, no mínimo, chamou a atenção a opinião pública internacional para o esquecido e empobrecido povo que ele tiranizou e cafetinizou.
Seus prosélitos preferem lembrar o curto período da vida em que Fidel se tornou herói no frustrado assalto do Quartel Moncada em 1953 até tomar o poder em Havana no primeiro dia de 1959. Desde esse ano, em que os guerrilheiros de barba e boina desceram a Sierra Maestra para assumir o poder, até hoje, os adoradores da revolução cubana omitem o paredón do Quartel de La Cabaña, onde o argentino Ernesto Che Guevara comandava pessoalmente fuzilamentos de suspeitos de inimizade com o regime. Esquecem ainda a ruína econômica e a brutalidade de uma autocracia que nunca respeitou a democracia, a justiça nem os direitos humanos. Seu mandarinato perseguiu homossexuais, que ele chamava de “enfermitos” (doentinhos), e é acusada de ter mandado sabotar o avião de Camilo Cienfuegos, quando percebeu que ele podia competir com o “comandante” pelo amor do povo. Ele é, pessoalmente, lembrado por ter incentivado o próprio Che, um gestor inepto e malsucedido, a trocar o conforto do poder no Caribe pela guerrilha na África. E, depois, na selva colombiana, onde foi executado para, na condição de mártir, ser celebrado em Cuba.
Afinal, Guevara era páreo para o companheiro cubano em matéria de carisma. Bonito, inflexível, tido como incorruptível, teve sua imagem de mártir confundida com a do Cristo depois de uma fotografia de Alexander Korda que ora ganha o mundo em banners, cartazes e camisetas. A confusão entre Marx e Cristo chegou ao paroxismo com a reprodução dos flagrantes de seu cadáver no tanque de uma lavanderia de uma vila miserável nos Andes, feitos no ângulo do quadro Lamentação sobre o Cristo Morto, de Andrea Mantegna. Seu lema passou a ser universal: “Hay que enderucer, pero sin perder la ternura jamás”.(“Há que endurecer, mas sem perder a ternura jamais”) No entanto, deixou a fama de ser uma besta fera sem limites e, portanto, sem nada que ver com ternura.
Fidel Castro, dizem seus adoradores, combateu e superou 11 presidentes americanos. A comparação é ruim para ele e boa para os inimigos. O total exibe a força da maior economia do mundo, reforçada pelo rodízio no poder, e a miséria que resulta de uma ditadura sem limites nem mudança de comando, governada por alguém que lutou por causas que se confundem com a barbárie num momento delicado de nossa civilização: repressão, violência, privilégio e preconceito. Isso não o impediu de, decênios antes dos selfies, ter sido adulado por papagaios de pirata seduzidos pela possibilidade de dividir um instante de sua fama de romântico e bárbaro. No Brasil, Fernando Henrique, José Dirceu, Fernando Collor, Aécio, Lula e Dilma, entre tantos outros, conseguiram esse duvidoso privilégio, e sempre com deslumbrados sorrisos de satisfação.
Os cubanos sofreram muito sob seu tacão, sem terem tido a sorte de seus fãs de além-Caribe, que conviviam apenas com um case de marketing, típico do capitalismo de massas. E agora padecem da terrível angústia de saber que seu futuro e o da ilha caribenha onde vivem ou da qual sentem saudade é incerto e não sabido. Mas, sobretudo, extremamente preocupante.
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