Thais Bilenky - Folha de São Paulo
Para o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Britto, a proposta de anistiar o caixa dois é um "jabuti e inconstitucional".
O jurista reagiu com indignação à tentativa, em curso na Câmara, de incluir o perdão ao uso de dinheiro de campanhas sem declaração à Justiça na proposta das Dez Medidas, apresentada pelo Ministério Público Federal.
Em entrevista por telefone à Folha, na sexta (25), Ayres Britto, 74, disse que Constituição não prevê a possibilidade de autoanistia de membros de um dos Três Poderes.
Folha - Como o senhor vê essa sucessão de crises nos mais altos cargos dos Poderes?
Carlos Ayres Britto - A história brasileira é permeada de relações de compadrio, alianças pessoais, relações narcísicas, fisiológicas, populistas. E isso continua, em certa medida. Só que o povo não aceita mais. O povo tirou a venda dos olhos. E o rei está nu. O rei é o poder, de uma maneira geral, especialmente o poder político.
Não tem motivo para desalento. Apenas registro esse divisionismo, impasse entre consciência coletiva mais clara e consciência político-partidária nem tanto. Mas quem vai sucumbir nessa queda de braço não é a cidadania.
Por quê não?
Você teve uma prova disso ontem [quinta-feira (24)], como aquele projeto fisiológico teve que recuar, a toque de caixa, por efeito da consciência coletiva em torno do fisiologismo da proposta e até a meu juízo da contrariedade constitucional da proposta.
Qual é a contrariedade?
O projeto é uma parafernália. É mistura de figuras penais e crimes eleitorais com uma serventia, autoanistiar membros do Legislativo. E a Constituição não admite isso em se tratando de membros de Poder. A anistia foi versada pela Constituição como perdão legal de infrações, mesmo no campo penal, protagonizadas por particulares.
Pelo que mais?
O que é feito por lei só pode ser desfeito por lei, ainda que temporariamente. Mas quando certos bens jurídicos são de regime centralmente constitucional, como a anistia, eles não estão entregues aos cuidados do legislador, se não for para serem robustecidos, e não desidratados.
É como quando a Constituição fala de ação de impugnação de mandato eletivo, instruída com provas de abuso de poder econômico, corrupção ou fraude.
Por esse entendimento, o Supremo barraria o projeto?
Se for aprovado, o projeto já nascerá vocacionado para o seu desvantajoso questionamento em juízo. Esse tema é uma pecinha de cristal, nuançado. É imbricado com outras figuras delituosas. O caixa dois pode ser produto de corrupção, de propina, meio de lavar dinheiro.
A origem dos recursos deve ser considerada na análise penal do caixa dois?
Pelo artigo 350 do Código Eleitoral, o caixa dois é falsidade ideológica. A meu juízo, esse tipo de lei é insuscetível de marcha ré, há proibição de retrocesso. O conteúdo dessa proposta não pode ser objeto de análise superficial e de votação a toque de caixa. Há muitas implicações.
Quando a Constituição cuida de anistia, pela gravidade do tema que é você anistiar alguém pelo cometimento de crime ou infração, só pode ser por lei monotemática, que cuide só disso. Não pode ser por emenda a projeto de lei, como é o caso das Dez Medidas. Aí você encaixa esse jabuti, que é a anistia.
O projeto é inconstitucional?
Em juízo preliminar, por múltiplos aspectos, eu considero o projeto inconstitucional.
Me sinto animado a concluir pela possibilidade de ilicitude dessa anistia. Seria a maior barafunda, a maior contradição no âmbito do ordenamento jurídico que o Estado perdoasse a si mesmo.
O Estado é o conjunto de seus Poderes. E não há Poder sem membros, deputados, senadores, presidente. E não existe a figura da autoanistia.
É por esse raciocínio sistêmico, holístico em cima da Constituição que eu só não encontro razões para pensar assim quando não procuro. Se for procurar mesmo só vou encontrar razões constitucionais para me contrapor à validade jurídica desse projeto.
O sr. avaliou as dez medidas?
Esse projeto é contrário a todo o espírito, todo o sentido do documento.
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