Vlady Oliver:
– O que mais me incomodava era o cheiro. O cheiro da morte. A morte tem um cheiro muito característico, sabia? – dizia o Mariner, relembrando a cena. ─ Cheguei a acordar várias vezes, com a respiração ofegante, sempre com aquele cheiro me envolvendo as narinas.
As pessoas pensam que uma guerra é um videogame, com um pouco mais de ação. Se acostumam a ver corpos dilacerados e sangue jorrando, mas não fazem ideia do asco e da perdição que tudo aquilo representa, quando está acontecendo bem ao seu lado. A guerra é estúpida, meus caros. Você recebe uma informação, pega uma arma, caminha numa direção mais ou menos definida, procura um alvo e tenta acertar, antes que ele te acerte. É matar ou morrer. É sonhar cada minuto com a volta pra casa e sair daquele horror, sem se dar conta de que muitos ali já não tem nem para quem voltar, quanto mais uma casa para viver.
E os sons? Os sons da batalha são aterradores. Começam com uma miríade de vozes confusas, gritos lancinantes, correrias e sirenes ao longe, antes dos fortes estampidos. Os ouvidos vão ficando anestesiados com o barulho ensurdecedor. É como se saíssemos do corpo para fugir e nos víssemos num espelho. É a alma que fala com você. Que pede clemência. Que não se importa mais com o traçar dos tiros.
Entramos no estádio bem no meio da tarde. As estruturas não suportaram o peso da vigarice, da empulhação, da corrupção, da falta de decência no trato com a vida humana. Superfaturadas e subdimensionadas, ruíram com todo mundo dentro. Tiros eram ouvidos por todo lado. Dizem que começaram de uma milícia cubana ali infiltrada, mas nos disseram que só tinham mandado médicos para cá. Assim mesmo as balas eram de verdade e matavam de verdade também. A modelo contratada para abrilhantar o evento foi a primeira a levar um balaço na nuca. Eles adoram um lindo crânio esfacelado para contar vantagem para o seu séquito de adoradores de uma besta. E por falar na besta, ninguém viu os cicerones da festa. Parece que conseguiram sair de fininho, em meio aos escombros.
A tevê local bem que tentou fazer algumas imagens da tragédia, mas foi impedida por milicianos armados e homens de burca que gritavam alguma coisa como “podres poderes”, como se cacarejassem. Os corpos jaziam amontoados, na entrada do Soccer Hall. Sei lá se é assim que se chama, pois só entendo de football, com dois oos. Tentavam reanimar um jogador famoso, pelo que eu entendi. Era brasileiro. Falei no passado porque no passado ele ficou. Já era. Seu corpo inerte não vai encantar mais ninguém nesta terra desolada. Quando tudo começou, na longínqua Venezuela, ninguém acreditava que aquilo chegaria à maior cidade do hemisfério sul.
Ninguém acreditava que o golpe era pra valer. Diziam que “o bicho ia pegar” – ” the animal will pick up” – mas eu não entendia o significado da frase até chegar aqui e constatar que a guerrilha já se disseminava por toda a cidade. Eles adoram queimar ônibus por aqui. Usam sua carcaçona para tudo; barricadas, abrigo para passar a noite, elementos de contenção e até para transportar gente, de vez em quando. Que nem gado. Nunca tinha visto um caminhão vestido de ônibus em meu país. Talvez por isso tenham começado os protestos pelo preço das passagens, queimando o impostor do transporte urbano. Isso não é um ônibus, é um escárnio com a população deste pobre rincão saqueado. Agora eu entendo tanto ódio acumulado para com os seus governantes. Todos são tratados como lixo por aqui. Aliás pior que lixo, que ao menos às vezes é reciclado.
Do estádio não sobrou quase nada; nem o hino nacional, que eles cortaram no meio. Quando todos gritavam o restante do canto em que irromperam os tiroteios e o ranger da estrutura ruindo. E foi assim que fomos chamados para iniciar uma guerra no próprio quintal americano. É uma pena que uma geografia tão pródiga tenha sido tão brutalmente atacada pela sanha de uma horda. Nem calor, nem frio. Só a morte. Vai ser bom para vocês pensarem o que vão querer da vida, daqui pra frente. Assim como no Iraque, fizemos nossa parte.
Cabe a vocês, que nunca se meteram em guerras, entender o que significa ser sempre subjugado por um bando de boçais, manejando o pão e o circo que um dia acaba em tragédias como esta. Encontrei um mindinho presidencial. Vou procurar um vidro de maionese e tentar liberar o amuleto como espólio de guerra. Se colar, fico rico. Em Las Vegas eles compram até os cílios que dizem terem pertencido a Marilyn Monroe, porque não? Valeu cara. Uma dia a gente se tromba por aí. Desculpe qualquer coisa; é assim que vocês falam por aqui? “Sorry; I’m being a live”. Só vocês mesmo
extraídadecolunadeaugustonunesfeiralivreveja
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