Jornalista Andrade Junior

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Mão pesada

Publicado na versão impressa de VEJA Roberto Pompeu de Toledo:

Na tarde da última quarta-feira, perseguido por repórteres que indagavam se haveria adiamento do prazo para pagamento do recém-criado Simples Doméstico, o diretor da Receita Federal, Jorge Rachid, respondeu: “Não pode haver adiamento. Está na lei”. Foi o momento supremo da arrogância com que o governo reagia às dificuldades que a turma do outro lado do balcão encontrava para saldar, com uma guia única, as várias contribuições devidas ao empregado doméstico.
Faltavam apenas dois dias para o prazo fatal, e a situação lembrou ao jornalista José Casado, em artigo no jornal Globo, um episódio ocorrido no passado com a hoje ministra Carmen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal. Ao tentar tirar um documento num cartório, Carmen Lúcia esbarrou com a exigência do CPF da mãe. Sem ele, nada feito. “Mas minha mãe morreu há trinta anos, e nunca teve CPF”, argumentou a futura ministra. “Sem CPF, impossível”, insistiu a funcionária. “Mas então me explique: como tiro o CPF de alguém que não é mais uma pessoa?” A funcionária não se comoveu. “Isso eu não sei, mas sem CPF não faço.”
No episódio presente tínhamos que os contribuintes não conseguiam obter a guia porque o site montado para esse fim falhava. Sem a guia, não se podia fazer o pagamento. E no entanto lei é lei, e o pagamento deveria ser feito no prazo sob pena de incorrer em acréscimos de multa e juros. Afinal houve, sim, o adiamento, e o governo Dilma safou-se de emplacar um clássico universal em que a prepotência do Estado, em toda sua plenitude, desafiava o absurdo.
A justa tentativa de elevar a categoria das domésticas ao nível dos demais trabalhadores, garantindo-lhes o FGTS, além do INSS, começou mal. Se vai superar esse primeiro obstáculo saberemos no fim do mês, quando se encerra o novo prazo. Outras questões pairam no ar. O Simples Doméstico, mesmo sem as trapalhadas da partida, já se revelou complicado demais. Exige dos empregadores, além das contribuições do FGTS, do INSS, do fundo para indenização em caso de despedida sem justa causa e do seguro contra acidentes de trabalho, que lancem e calculem os valores das horas extras, do adicional noturno, das férias e do 13º, sem esquecer da retenção de imposto de renda para salários acima de 1 903,98 reais. Vai se precisar montar uma folha de pagamento, e, para saber fazê-lo direito, com domínio da legislação e das diferentes alíquotas dos impostos, segundo Vera Éboli, diretora de um escritório de contabilidade em São Paulo, só se os patrões se submeterem a “um rápido curso de departamento pessoal”.
Do lado das empregadas, felizes daquelas que, com patrões corretos, e capazes de encarar o novo papel, quase o do dono de uma empresa, gozarão agora de novos e importantes direitos. Permanece duvidoso se as outras, a massa dos 80% que já não tinham carteira assinada, poderão aspirar a melhor sorte. Estava cadastrado no Simples Doméstico na semana passada (cadastrar não era tão difícil; tirar a guia é que era) 1,2 milhão de empregadores, contra um total de empregados domésticos no país de 6,4 milhões, de acordo com a Pnad 2013. Isso faz supor que estão se cadastrando apenas os 20% que já pagam INSS. Os demais seguem confiantes na histórica ambiguidade segundo a qual, sendo “da casa”, ou “quase da família”, o trabalhador doméstico já está suficientemente recompensado.
Estudo da Organização Internacional do Trabalho realizado em 2013 com dados de 117 países apontou o Brasil como campeão mundial em número absoluto de trabalhadores domésticos. O país teria 6,7 milhões de empregadas e 504 000 empregados (mais do que calculou a Pnad). Veio em segundo lugar a Índia, com 4,2 milhões, e em terceiro a Indonésia, com 2,4 milhões. É provável que o Brasil seja igualmente o campeão mundial de frentistas e de cobradores de ônibus. Ocupações em declínio ou em extinção no mundo desenvolvido por aqui continuam florescentes.
Ocorre ─ eis a armadilha em que nos metemos ─ que desestabilizá-las pode gerar maciço desemprego.
A nova legislação representa de um lado um avanço civilizacional e de outro uma ameaça ao mercado dos trabalhadores domésticos. Patrões que podem fazê-lo vêm se socorrendo nos escritórios de contabilidade. Em outros, vislumbra-se a tendência de optar pela empregada de dois dias por semana, que não precisa ser registrada. A nobre causa de dar direitos aos trabalhadores domésticos contaminou-se de excesso de burocracia e de taxas que vão além do FGTS. A mão do Estado baixou mais pesada do que devia. O efeito colateral pode ser danoso.









extraídadecolunadeaugustonunesopiniãoveja

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