Valentina de Botas:
Eduardo Giannetti, cujas erudição e clareza admiro, me pareceu um pouco confuso no programa Roda Viva.
O governo Temer não tem legitimidade, repetiu mais vezes do que lhe foi
perguntado; ao mesmo tempo, afirmava que a lei deve ser sempre
observada, esquecido de que foi precisamente essa a receita do
impeachment de Dilma Rousseff e que Michel Temer assumiu legitimado,
então, no cumprimento da Constituição, a lei maior. Exceto pela fraude
de Renan Calheiros e Ricardo Lewandowski preservando os direitos
políticos de Janete. Com alvar clareza e denso conhecimento, Giannetti
deu uma aula de Brasil e ressaltou uma enormidade ofuscada pela
magnitude da corrupção: a incompetência inata de Dilma teve mais
relevância na destruição do país do que a roubalheira. Contudo, o
economista não compreende por que a população, que foi às ruas em 2013
por razões menores, não faz o mesmo agora. Não tenho lições a dar ao
escritor de quem li com prazer o livro “Auto-engano”, só quero lembrar,
como integrante da população que não foi às ruas em 2013 e não vai
agora, que quando os indignados ensaiávamos ir às ruas naquele ano, os
black blocs as tomaram levando o terror a algumas cidades.
Aqueles movimentos, sem uma pauta
nacional e simpáticos ao governo Dilma Rousseff que logo simpatizou
eles, deram passe livre a delinquentes anistiados como manifestantes por
muitos jornalistas encantados com a estética do vandalismo também moral
de fascistas mascarados e, fazendo poesia ruim e péssimo jornalismo,
homenageavam aquela versão troncha de um ainda idealizado maio de 68
enquanto ônibus eram incendiados, o cotidiano das cidades convulsionado e
a população aterrorizada. Ora, esses bandos tinham objetivos diferentes
dos da nação indignada que mostraria como se protesta civilizadamente
e, em São Paulo, por exemplo, pretendiam atazanar o governo de Geraldo
Alckmin visando as eleições de 2014. Inicialmente, o pretexto eram os 20
centavos de aumento na tarifa de ônibus e metrô. Depois, entoavam que
“não é pelos 20 centavos”. Não mesmo: Janete, que ignorava o Congresso,
quis conversa com os black blocs, recebidos, então, por Gilberto
Carvalho, ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência. Não por
acaso, tentaram se infiltrar nas manifestações pró-impeachment, mas
foram repelidos porque ali não havia lugar para fascismos de ordem
nenhuma. O terror serviu ao governo federal espantando estrategicamente
das ruas os brasileiros indignados; resultou, em São Paulo, em dezembro
daquele ano, no espancamento do coronel da PM Reynaldo Simões Rossi que,
sangrando a caminho do hospital, ainda advertia seus comandados que não
reagissem àquela agressão; e culminou, no Rio, em fevereiro de 2014, no
assassinato do cinegrafista Santiago de Andrade.
Não sou porta-voz de ninguém, só porto
mesmo a minha voz anônima, que fui aprendendo a tornar pessoal, própria;
ora mais indignada, ora mais tristonha, ora mais esperançosa, ora mais
calada ou mais audível dentro das nossas realidades que só me dão a
sensação de que as percebo porque me intrigam e me desconcertam. Assim,
não sei dizer por que a população se retrai agora, falo por mim: o mundo
acabou, todos os avisos anunciam depois de cada delação, mas essenciais
pendências demasiado mundanas me prendem a ele na vida para se ganhar
dia a dia, para se perder um pouco a cada dia, para se achar algum riso
apesar do que desafia a alegria possível de se viver num país que,
acometido por desordens cognitivas, parece achar que a realidade é
somente questão de adesão. A mobilização permanente inviabiliza o
cotidiano e as forças mobilizadas agora representam arcaísmos e querem
parar o país contra as reformas que podem tirá-lo da paralisia, como se
estas fossem mero querer de um governo cujo apelido de ilegítimo serve a
quem as combate por conveniência e/ou desinformação, numa recusa em
aderir ao século 21 e ao fato de que, se as reformas não forem
encaminhadas agora, o vulnerável presidente Michel Temer perderá pouco
ou nada de seu capital político que era somente a nobre moldura
fornecida pelo justo alívio da nação em se livrar de Janete.
Só que os fatos não são uma questão de
adesão e quem perde é a nação adiada. Nesse contexto, eu iria às ruas em
favor, e não contra as reformas sem as quais o país lavado a jato não
existirá. Marchar por elas seria o desdobramento natural dos protestos
pelo impeachment se os movimentos que os impulsionaram não tivessem se
confundido a tal ponto que se interseccionam com as forças contrárias a
ele. Ah, mas não pode fazer as reformas depois? Claro que sim, nunca
também, outro nome para o depois que não chega.
Giannetti reafirmou a necessidade
dramática das reformas, mas o tal governo ilegítimo, ministros e
parlamentares investigados… A alternativa? Ele gosta da ideia de uma
constituinte exclusiva. Eu não. Receio que a exclusividade tornaria os
constituintes descompromissados quanto ao que aprovarem. Mas o que mais
me incomoda na ideia é que seus simpatizantes parecem convencidos de
que, do lado de fora do Congresso, só há homens e mulheres probos e
competentes, entre os quais o eleitor escolherá, com a precisão que só
os eleitores têm, uma elite moral e técnica para alinhavar o
futuro. Enquanto isso, ficamos pendurados na sucessão de fins do mundo.
Ademais, os congressistas e o governo teriam competência institucional
para o dia a dia administrativo-legislativo do país, mas não para as
reformas? Para quais outros atos estariam legitimados ou deslegitimados?
Aqui relembro, mais com desencanto pragmático do que com indignação
estéril, as boas-vindas de Ulisses Guimarães ao neófito Dantas de
Oliveira: estou no Congresso há sete legislaturas e nunca vi uma melhor
do que a posterior.
Pelo olhar de Giannetti, vimos a nação
sem sentido esmagada entre a ausência do Estado onde ele é essencial e a
presença dele onde ele é indesejável. Tomara saibamos, nessa falta de
sentido, fundar o tempo para inventar outro país. Com algumas ressalvas,
achei pertinente o diagnóstico sobre a desidratação do PT como
representação do pensamento de uma parcela da sociedade que, se aderir à
realidade, constatará na sigla o comando da máfia que vendeu a nação
com a conivência imperdoável da oposição. O PT, sempre apostando na
desordem cognitiva do país, ainda rumina cálculos entre as
possibilidades eleitorais de Lula e o calendário da Lava Jato como se o
gangsterismo lulopetista não justificasse a extinção do partido.
Parar a nação quase paralisada, neste 28
de abril, dá sobrevida ao primitivismo radicalizado que o lulopetismo
nos legou; a adesão de brasileiros de bem a uma greve contra si
manifesta nossa desordem cognitiva e celebra o legado de um defunto
moral e político que insiste em simular imortalidade: Lula, confirmação
inquestionável de que quando um homem se vende, por menos que receba –
ainda que o desprezível sacerdote do nosso atraso tenha ganhado muito
negociando a nação – sempre recebe mais do que vale.
extraídadeblogdeaugustonunesopiniaoveja
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