por Fernão Lara Mesquita O Estado de São Paulo
A nossa “revolução fundadora” está em pleno curso, ainda que, por
enquanto, à revelia da maioria de nós. E é irreversível. Difícil, depois
de 500 anos e entre tantos abismos materiais e educacionais, é
refundarmo-nos para o bem evitando rupturas e explosões
“venezuelizantes”.
Partimos de um labirinto. Há leis demais e órgãos públicos demais. As
competências são sobrepostas, cruzadas, conflitantes. Nada pode ser
definido com clareza, tudo pode sempre, e impunemente, não ser aquilo
que parece.
A questão das prisões preventivas é exemplar. Onde está o ponto de
equilíbrio entre a necessidade de forçar delações sem as quais não
sairemos jamais desta “lenociniocracia” que mata mais de 60 mil por ano e
a de assegurar respeito aos direitos individuais? Só há uma maneira boa
– Winston Churchill dizia que era apenas a menos ruim – de resolver
problemas como esse. Ninguém deu a isso resposta melhor que a elite do
Iluminismo. Com 241 anos de aperfeiçoamentos do modelo do qual não
adotamos ainda sequer os pilares da fidelidade da representação, da
igualdade perante a lei e do controle do governo pelo povo, não falta
com que começar. Não temos de inventar nada, temos só, como os
japoneses, como os coreanos, como tanta gente de sucesso no mundo, de
desinventar tudo o que inventaram para nos manter fora da democracia.
O problema é que não há como fazer isso de modo totalmente pacífico.
Será preciso uma dose não pequena de criatividade e arbítrio para
desmontar esta arapuca. O STF do bem deu um belo drible quando confirmou
a legalidade das prisões a partir da 2.ª instância, a estaca zero do
mundo civilizado da qual nunca deveríamos ter-nos afastado. Mas o outro
abriu a porta da ratoeira. Deixar bandidos flagrados sem um horizonte
previsível é decisivo para empurrá-los a uma delação premiada, mas é
também o que define tecnicamente a ausência de um Estado de Direito.
Agora, dizer que isso em que vivemos é um Estado de Direito...
Todas as respostas necessárias à reconstrução do Brasil envolvem esse
tipo de dilema. Será preciso considerar judiciosamente, a cada uma
delas, os custos e benefícios que, para fazerem mesmo sentido, terão de
ser avaliados no devido horizonte de tempo e dentro da sua
circunstância. Trata-se de contrabalançar cinco séculos de respostas que
quase sempre desfavoreceram o lado do bem. Isso ensejará que o outro
lado argumente como se não houvesse nada acumulado no outro prato da
balança, sempre com lógica para o horizonte imediato ou para o ponto
considerado fora de seu contexto. E seus argumentos, tomados
isoladamente, parecerão fazer tanto sentido que até o mais notoriamente
venal dos argumentadores poderá recorrer a eles sem que se possa,
tecnicamente, acusá-lo de desonestidade.
Essa é a nossa “revolução fundadora”, porque não é mais uma opção deixar
de fazê-la. Lula, com seu lendário senso epidérmico de oportunidade,
deu-se conta imediatamente disso. Foi o que o tirou da depressão. Bem no
ocaso da sua capacidade de incendiar plateias medida de cima dos
palanques, caiu-lhe no colo o “argumento” capaz de “ressuscitar a
militância” que andava com vergonha de mostrar sua carteirinha do
partido.
O que, exatamente, amarra no mesmo enredo gente tão diferente quanto
José Dirceu e sua guerra imaginária contra “ditadores” e “cães da
ditadura” do milênio passado, na qual militância política e assalto a
banco se confundem, os ministros do STF, com seus diferentes graus de
suscetibilidade às tentações terrenas, Michel Temer e suas madalenas
arrependidas, o cavaleiro errante de Curitiba e seus fiéis escudeiros do
Ministério Público, o oportunismo atávico dos ladrõezinhos e dos
ladravazes de dentro e de fora do Congresso e, pairando acima de todos,
Luiz Inácio Lula da Silva, o reciclador geral da nossa mixórdia, em
cujas mãos nada se perde, tudo se transforma em benefício do “eu”?
O bolso.
As ações e as intenções são genuinamente diferentes, mas na entrada, no
meio do caminho ou na saída, o papel desempenhado por cada um desses
atores tem mostrado uma mesma inconsistência. Um elo fraco que, na “hora
H”, expõe seu flanco, afrouxa a sua garra e enseja que o filme recomece
do zero.
A defesa, por ação ou omissão, da parte que a cada um deles cabe no
latifúndio dos privilégios da estabilidade no emprego e do salário
independente de resultado eternamente garantidos, das acumulações e dos
“auxílios” para os quais o céu é o limite e das superaposentadorias
precoces e frequentemente hereditárias onde tudo isso termina é que tem
impedido que se feche o círculo e os põe a todos mais próximos uns dos
outros do que de quem paga essa conta.
Os ladrões que uns prendem e os outros soltam são só os agentes de uma
coisa muito maior e menos eventual. Toda essa roubalheira está a serviço
de comprar as eleições, que não têm outra finalidade senão manter os
“marajás” como e onde eles estão.
O populismo não é senão a socialização da corrupção. Lula, como sempre,
confia cegamente na venalidade dos indivíduos e das massas e, para ele, é
vencer ou vencer; ou a Presidência de um Brasil definitivamente
venezuelizado, ou a cadeia. Não perde tempo com argumentos. Confia
inteiramente na “escala” das esmolas que espalhou e do “poder de
convencimento” que seus fiéis soldados José Dirceu e Marcelo Odebrecht
lhe garantiram mantendo a roubalheira “antes, durante e depois” da Lava
Jato para nos levar para esse Brasil sem imprensa e sem lei.
O Brasil do bem vai ter de se decidir. Não se ganha essa guerra sem o
povo na rua e os argumentos do “acerto das contas públicas” e mesmo a
ameaça do aquecimento do inferno em que já vivemos não mobiliza ninguém.
O que, sim, une o resto do Brasil, que paga essa conta com miséria num
horror cada vez mais visceral, é o privilégio, fora do qual e contra o
qual todos eles hesitam em se colocar. Mas, da imprensa às tribunas do
Congresso ou às bancas dos tribunais, essa é a chaga menos exposta e a
palavra menos pronunciada no barulho todo que se fez até aqui.
extraídaderota2014blogspot
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